Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial passará a funcionar com dois promotores na capital; ativistas cobram clareza sobre participação popular nos trabalhos
Foram quase cinco anos de pressão de movimentos sociais, negros e periféricos até que o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) formalizou, na segunda-feira (22/8), a criação de um novo grupo para fiscalizar a atuação das polícias. O Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) passa a substituir o agora extinto Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (Gecep), que havia sido instituído dentro do órgão em 2003.
A resolução foi assinada pelo atual procurador-geral de Justiça Mario Luiz Sarrubbo que, desde 2018, quando ainda era subprocurador, havia firmado um compromisso de, inicialmente, criar uma promotoria especializada. A primeira proposta sobre uma reformulação do Gecep foi feita à Procuradoria em setembro de 2017 pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que reúne coletivos e ativistas que fazem denúncias de violações de direitos humanos nas periferias e auxilia jurídica e psicologicamente vítimas e familiares, e contou com apoio de 27 organizações.
De acordo com o promotor e coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim) do MPSP Arthur Lemos Jr, a demora da criação do novo grupo dependeu de uma “reflexão profunda” e aprovação dos órgãos superiores do Ministério Público.
Ele nega que a proximidade com o período eleitoral tenha apressado a implementação do Gaesp, quando falou à Ponte no início do mês, embora o próprio Sarrubbo tenha declarado ao jornal Folha de S.Paulo, há uma semana, que o grupo surge para aprimorar o controle externo da atividade policial em um momento de tensão política crescente nas polícias.
A diferença para o antigo Gecep, cuja previsão era de atuar em inquéritos policiais e em delegacias, é de que agora o novo grupo também poderá realizar planejamento, proposição, fiscalização e monitoramento das políticas de segurança pública, o que é chamado de tutela coletiva, além do controle externo das polícias, incluindo as guardas municipais. “Isso significa que o grupo pode instaurar e manejar inquérito civil público, fazer recomendações, poderá interpor ação civil pública, então, além da atribuição de um promotor criminal, também terá atribuições que um promotor cível tem”, explica.
A resolução inclui a promoção de “diretrizes de prevenção e repressão à criminalidade” e “celeridade e regularidade das atividades de investigação”. “Nós estamos aprimorando um trabalho da polícia judiciária [que tem atribuição de investigar]: identificar a subnotificação, as principais causas, as regiões com maior índice de letalidade policial, aprimorar estudos que já fazemos, causas de mortes de agentes de segurança pública, observação da cadeia de custódia da apreensão de bens, uma série de situações que a gente precisa aprimorar”, completou o promotor.
O texto não aponta quantos promotores serão designados para atuar no grupo. O antigo Gecep previa a atuação de seis membros. De acordo com Lemos Jr, serão dois promotores que serão nomeados pelo procurador-geral para atuar na capital paulista como um projeto inicial. “Nós vamos ter núcleos do Gaesp regionais, esses nós ainda vamos criar com novos promotores”, garantiu. O órgão ainda vai abrir um edital para as inscrições e todo o processo, estima, deve demorar 30 dias para que o grupo passe a funcionar de fato na cidade de São Paulo.
Para a psicóloga e articuladora da Rede, Marisa Fefferman, a criação do Gaesp é importante e a estruturação deve ser incentivada, mas o texto não esclarece qual vai ser a participação de movimentos sociais na construção do grupo, embora esteja prevista a integração com entidades da sociedade civil.
“Entendemos que a proposta de atuar com a Segurança Pública para o ‘combate à criminalidade’ não apresenta caminhos para o monitoramento dos inquéritos policiais de casos envolvendo agentes de segurança pública, estando ausente o aperfeiçoamento dos instrumentos de apuração respeitados os direitos e garantias fundamentais dos envolvidos”, declarou. “É necessário aprofundar como será o aperfeiçoamento da atividade das promotorias de justiça em casos de violência policial, bem como implementar uma agenda de capacitação aos diversos profissionais do Ministério Público com participação de entidades e movimentos da sociedade civil”.
Arthur Lemos rebateu dizendo que o texto “não é vago” e que “segue a uma linha técnica necessária, tal como dispõe a norma que criou o Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado], que funciona bem”. Ele garantiu que as organizações serão integradas para que as ações aconteçam. “O Gaesp fará reuniões periódicas com a Rede de Proteção ao Genocídio e com outras entidades, tal como prevê a resolução.”
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, entende que a implementação mais abrangente sobre o controle externo das polícias é um avanço, mas é preciso definir prioridades para que a sociedade possa acompanhar e participar.
“Existe essa primeira prioridade que é aliar as forças de segurança no processo eleitoral democrático, fazer um olhar para isso, e também de se ter planejamento e uma rotina de trabalho permanente, com focos prioritários, de se aproximar com as polícias e a sociedade civil, com marcos de trabalho para o ano que vem, para que não fique parado e concretize o que está na resolução porque não vai conseguir fazer tudo ao mesmo tempo”, aponta.
Por que é importante
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu artigo 129, que uma das funções dos Ministérios Públicos é fazer o controle externo da atividade policial. Ou seja, é quem tem atribuição de fiscalizar e investigar a atuação das polícias. “A Constituição prevê, mas não tem uma regulamentação detalhada do que realmente é esse papel de controle externo, não só no MP de São Paulo, mas no Brasil, e a gente avançou muito pouco nesse sentido”, pontua Carolina Ricardo, do Sou da Paz.
A entidade, em conjunto com o Instituto Igarapé, inclusive, encaminhou uma agenda com 10 propostas no campo da segurança pública para os presidenciáveis que concorrem ao pleito de 2022, dentre elas, consta “aprimorar e fortalecer mecanismos de controle externo da atividade policial, incluindo a implementação de mecanismos de controle do uso da força”. Esse pedido já foi feito pela entidade em eleições anteriores.
Neste ano, a Anistia Internacional e outras 18 organizações lançaram a campanha “O Ministério tem que ser público” para que o órgão exerça e garanta controle externo e participativo da atividade policial em seus territórios. O projeto inclui um documentário em que são contadas histórias de famílias que tiveram parentes mortos em ações da polícia.
Uma dessas famílias é representada pela cuidadora de idosos Edna Carla Souza Cavalcante, 50, mãe de Sousa Cavalcante, 17, e líder dos movimentos Mães do Curió e Mães da Periferia de Vítima Por Violência Policial do Estado do Ceará.
Em 2015, Álef e outras 10 pessoas pessoas foram mortas e sete ficaram feridas, em ataques ocorridos nos bairros Curió, Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana, em Fortaleza, capital do Ceará. Segundo o Ministério Público Estadual, 45 policiais militares promoveram a matança após a morte do PM Valtermberg Chaves Serpa, um dia antes, ao intervir em uma tentativa de assalto contra a esposa, em Lagoa Redonda. Em 2016, a Justiça do Ceará aceitou a denúncia contra 44 dos 45 PMs. Desses, 34 devem ir a júri popular, 10 foram impronunciados, ou seja, sem provas suficientes para irem a julgamento pelo Tribunal do Júri.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho, apontou que 6.145 pessoas foram mortas pelas forças de segurança estaduais em 2021, sendo que 84% das vítimas eram negras. Isso significa que as mortes pelas polícias equivaleram a 13% de todas as mortes violentas intencionais no Brasil no ano passado.
Além disso, só em 2016 as mortes praticadas pelas polícias deixaram de ser oficialmente registradas como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte” e passaram para “morte decorrente de intervenção policial” porque antes se presumia que todo e qualquer homicídio praticado por policiais se deu em legítima defesa, ou seja, em confronto.
Nessa cadeia de apuração, o Ministério Público é um dos principais órgãos que chancela essa premissa. Por exemplo, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que os Ministério Públicos de São Paulo e do Rio de Janeiro pediram arquivamento dos casos em 90% dos inquéritos sobre letalidade policial nas capitais desses estados em 2016.
Um estudo feito pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), em 2015, apontou que dos 899 promotores e procuradores de MPs federal e estaduais entrevistados, 88% responderam que não viam o controle externo da polícia como prioridade do órgão e 70% disseram que não se envolveram nem exclusiva nem parcialmente na área.
Uma das entidades que integra a campanha da Anistia e cobra há 16 anos por uma atuação combativa do Ministério Público é o Movimento Independente Mães de Maio. “Nos Crimes de Maio, o MP obrigou que as mães fizessem a própria investigação dos casos, enquanto eles investigavam as vítimas e não os algozes”, critica a fundadora Débora Maria da Silva.
O filho dela, o gari Edson Rogério, morto aos 29 anos, é uma das 505 vítimas do massacre de 2006, durante ações de policiais e grupos de extermínio entre os dias 12 e 21 de maio daquele ano em uma reação de vingança contra os ataques da facção criminosa Primeiro Comando do Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais. Até hoje ela aguarda uma resposta do MP Estadual, que reabriu a investigação dos crimes da Baixada Santista, em que 12 pessoas foram assassinadas, após o MPF ter arquivado o caso.
Na época dos assassinatos, em 25 de maio de 2006, 79 promotores assinaram um ofício em que reconheciam “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada”. Um promotor que se arrependeu da canetada foi Eduardo Ferreira Valério, que em 2019 moveu uma ação civil pública pedindo a reparação dos familiares das vítimas dos Crimes de Maio.
A ação, no valor de R$ 154 milhões, pedia indenização não só para os 505 civis mortos pelo Estado, mas também para os 59 agentes públicos mortos em ataques criminosos no período. O processo atualmente está em recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que o tribunal paulista negou o pedido alegando que os crimes prescreveram.
A transferência das investigações para a esfera federal é uma bandeira antiga do movimento. No começo deste mês, o STJ decidiu pela federalização das investigações da chacina do Parque Bristol, em que cinco jovens foram mortos após serem baleados por homens encapuzados, na zona sul de São Paulo, em 14 de maio de 2006 — o massacre faz parte dos Crimes de Maio.
A decisão vem seis anos depois que o então procurador-geral da República Rodrigo Janot entrou com um pedido para transferir a apuração do caso para a Polícia Federal, atendendo a uma solicitação feita em 2009, por familiares da vítimas, pela Defensoria Pública e a ONG Conectas Direitos Humanos. Os ministros reconheceram que as autoridades, incluindo o MPSP, foram omissos e cometeram falhas ao arquivarem o caso. À Ponte, a assessoria do órgão disse que vai recorrer dessa decisão.
Apesar de o MPSP ter um grupo desde 2003, Débora aponta que essa atuação foi praticamente inexistente. “É um absurdo saber que até hoje não tinha um grupo para fazer algo que é obrigação do MP, que é fiscalizar a polícia, e até hoje não faz”, afirma.
Mas a atuação mais repudiada pelo movimento é uma declaração de 2015 em que uma promotora que atuava no Gaeco, Ana Maria Frigério Molinari, lançava calúnias afirmando que havia recebido a informação de que o Movimento Mães de Maio seria formado por mães de traficantes, que, após a morte de seus filhos, em maio de 2006, teriam passado a gerenciar pontos de venda de drogas, com o apoio do PCC.
A divulgação de um vídeo com as calúnias da promotora rendeu censura à Ponte em 2016 por decisão judicial e chegou a ser utilizada pela defesa de dois acusados, que foram absolvidos, durante julgamento da Chacina de Osasco. Nela, o advogado João Carlos Campanini apresentava a aparente intenção de ligar Zilda Maria de Paula, líder do movimento Mães de Osasco e mãe de Fernando Lins de Paula, morto na chacina de 2015, a uma visão criminalizada das Mães de Maio.
Ele continua usando as calúnias em júris de PMs. A promotora não foi punida e o movimento cobra que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) reabra a apuração da conduta da servidora.
O que diz a polícia
A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre o novo grupo do MPSP. A pasta encaminhou a seguinte nota:
O MP já exerce papel fiscalizatório sobre a atividade policial. A Secretaria de Segurança Pública sempre esteve à disposição para prestar as informações necessários ao exercício dessa atividade. Todas os dados solicitados pelo MP serão fornecidos pela SSP.