Frequentadores de baile funk denunciam rotina de repressão da PM; no último dia 28, jovem foi assassinado na zona sul de SP e testemunhas afirmam que disparos partiram da polícia
No último dia 28, um estudante foi morto a tiros no baile funk conhecido como “Bailão do Porto”, no Jardim Porto Velho, região do Grajaú, extremo sul de São Paulo. A festa, que já ocorre há pelo menos cinco anos, é frequentemente interrompida pela chegada da PM. Testemunhas afirmam que a viatura da Força Tática chegou no chamado ‘fluxo’ – local onde o som e as pessoas se concentram – disparando na direção do jovem. “A PM chegou na maldade, atirando sem olhar. Fizeram isso pra acabar com o baile”, contou uma das testemunhas ao R7. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por outro lado, afirma que garoto estava morto quando a polícia chegou.
O que pode parecer um caso isolado é rotina nas periferias da cidade de São Paulo, segundo jovens ouvidos pela Ponte. “A gente ouviu essa semana o relato de um jovem que estava no baile funk, foi abordado, agredido e o policial disse ainda: ‘Se você olhar para trás e anotar o número da viatura, eu vou te bater mais ainda'”, conta o ativista e morador da periferia Darlan Mendes, que acompanha os movimentos de rolezinhos e baile funk e denuncia essas violações por parte da polícia.
Em agosto do ano passado, por exemplo, Lucas Miranda da Silva, morador da favela do Moinho, foi morto em um baile funk na Brasilândia, zona norte da capital paulista. Testemunhas afirmaram que policiais chegaram na rua disparando e encurralaram o grupo que participava da festa em uma rua que era estreita e sem muitas saídas. Um mês antes, três jovens foram mortos também quando participavam de um “pancadão”, dessa vez na zona sul de São Paulo. Nesse caso, segundo as investigações da época, foram motoqueiros que chegaram e atiraram nas vítimas.
Há também um processo de criminalização desse tipo de movimento. No início do ano, o ex-prefeito de São Paulo e agora candidato ao governo do estado, João Doria (PSDB), deu declarações criminalizando os bailes. “São originários do PCC”, teria dito o tucano em entrevista à Rádio Bandeirantes. Rapidamente, a Liga do Funk reagiu. “Ele nos prometeu dar continuidade ao programa Funk SP. Eleito, esqueceu dos moleques e quer entrar com tiro, porrada e bomba nas comunidades”, criticou um dos integrantes da Liga.
No ano passado, MC Leonardo já alertava para um endurecimento e aumento do aparato repressor com relação a essas festas. Embora conheça mais a realidade do Rio, o cenário pintado por um dos maiores representantes do funk carioca caberia em São Paulo. Em entrevista à Ponte, o MC disse que “o funk está no seu pior momento em 40 anos. Não existiu um momento tão ruim para a cultura da favela no Rio de Janeiro como este. A maneira com que ela está sendo exterminada é com a ponta do fuzil”.
Uma série de casos isolados
“A gente tava chegando no baile quando eles [Polícia Militar] já nos abordaram de joelho. Ai começaram a bater na gente, ameaçar de morte, a gente de joelho eles com a arma na nossa cabeça não sabíamos o que iria acontecer. Depois que eles acharam um baseado eles pegaram a máquina de choque, e perguntaram quem queria tomar choque? Se você falasse que não queria você tomava, se falasse que queria ou não falasse nada tomava do mesmo jeito” conta Rafael* sobre uma abordagem ocorrida no Parque Edu Chaves, na zona norte de São Paulo, no final de 2016.
Na mesma região, mas em outro bairro, o Vila Juliete, Leandro* foi atingido por uma bala de borracha no rosto, enquanto tentava se afastar do ‘fluxo’. O caso aconteceu em novembro de 2017 e foi por um triz que ele escapou de ficar cego: a bala acertou alguns centímetros abaixo do olho. “A Força Tática veio na minha direção, quando eu ameacei virar pra encostar na parede senti o impacto no lado esquerdo do rosto, ai eu comecei a correr e eles a rir. No desespero nem percebi o que tinha acontecido, só quando eu vi o sangue entendi que eles tinham dado um tiro de bala de borracha no meu rosto. Eles miraram bem na minha cara mesmo porque tava muito perto”.
Os jovens acreditam que o racismo é um dos motivos para que eles se tornem alvo da PM. “Acho que os caras batem na gente porque na maioria somos negros e de periferia.” Os frequentadores também entendem que a falta de regularização e de diálogo com o poder público é outro elemento que prejudica a realização dos bailes. ” Eles acabam com o baile por que é na rua, sem organização, eles [poder público] não fazem nada pra gente curtir, e é inevitável a periferia curtir. Eles vem bravo pra não ter mais baile, mas não adianta continua do mesmo jeito, os caras fazem várias covardias”.
Em geral as festas, que se tornaram para muitos a forma preferida de lazer, não possuem nenhum tipo de organização. Elas acontecem de forma orgânica, nas ruas das periferias de São Paulo e juntam milhares de jovens. Carros com equipamentos de som estacionam em locais onde tradicionalmente já ocorrem bailes como na Marcone/Parque Novo Mundo, Helipa/Heliopólis, Baile da DZ7/Paraisópolis e, rapidamente, o aglomerado de pessoas começa a se formar. Alguns bailes contam com participação de mais de 5.000 pessoas, que não são apenas da comunidade onde a festa acontece, mas de várias regiões de São Paulo.
Além dos riscos naturais de um evento tão grande com milhares de jovens sem qualquer segurança, a ação da PM com farto uso de bombas e balas de borrachas, de acordo com frequentadores, gera constantemente tumulto e a possibilidade de pisoteamentos. Como a repressão por parte da PM já é esperada, a maioria dos jovens que estão curtindo o baile sabe que vai “moiar”, termo usado na periferia para afirmar que algo não vai acabar bem.
Para Darlan Mendes, que foi um dos responsáveis por organizar os chamados “rolezinhos”, regularizados pela Prefeitura de São Paulo durante a gestão do prefeito Fernando Haddad , a violência tem raízes na discriminação. “O jovem já é discriminado pelo corte de cabelo, pela roupa que usa, então ele nem precisa dizer que está indo pro baile funk”, afirma. Em 2015, os projetos Funk SP e Rolezinho da Cidadania foram criados, mas pouco mais de um ano depois, passaram a sofrer com recorrentes cortes de verba até ter o fim decretado com a mudança de gestão.
Para a coordenadora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Vivian Calderoni, as práticas da polícia militar para acabar com os bailes funk de rua podem se enquadrar como crime de tortura. “É possível fazer essa interpretação. Para a configuração do crime de tortura é necessário que alguém tenha sido submetido, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental”.
A coordenadora do IDDD não acha necessário o emprego de força para finalizar um baile. “O papel da Polícia Militar em um Estado Democrático de Direito é a realização do policiamento ostensivo e prevenção do crime. A atuação da polícia deve ser sempre proporcional e adequada ao caso concreto. Não há nada que nos indique que encerrar um baile com uso da força seja adequado e proporcional, muito pelo contrário. É necessário que a PM tenha um protocolo de uso da força público e que siga as diretrizes internacionais sobre o tema e respeito aos direitos humanos.” conclui Vivian Calderoni.
Outro lado
Questionada sobre a necessidade da criação de espaços onde os bailes possam ocorrer com segurança a Secretária de Esporte, Lazer e Juventude, disse em nota que não organiza nenhum espaço onde aconteçam bailes funk. Porém realiza a Balada Campeã. Trata-se um programa sociodesportivo que oferece esporte, cultura, entretenimento e uma balada completa em regiões com alto nível de vulnerabilidade social. Na primeira edição (realizada entre setembro e novembro de 2017), o projeto foi organizado em escolas estaduais nas quatro maiores comunidades da cidade de São Paulo: Brasilândia, Paraisópolis, Heliópolis e Rio Pequeno. Durante a balada, o ritmo mais pedido pelos jovens aos DJs era justamente o funk. Mas para jovens ouvidos pela reportagem, a demanda é maior do que o que é oferecido pela Secretária de Esporte, Lazer e Juventude.
Procurada para comentar as ações da Polícia Militar, a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo) não se pronunciou até a publicação da reportagem.
Como denunciar uma agressão policial?
Denúncias de ilegalidades podem ser apresentadas no próprio site da SSP (quando for um PM), diretamente para a Corregedoria das respectivas corporações ou para a Ouvidoria das polícias e também para o Ministério Público – que tem o dever constitucional de realizar o controle externo da atividade policial. Esses relatos também podem ser encaminhados para o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Para fazer a denúncia, é importante ter o maior número de informações a respeito do policial que cometeu a violação: nome (se ele estiver identificado), características físicas, confira se é um policial civil ou militar, o número da viatura, fotografe as lesões provocadas e procure conseguir testemunhas dos fatos. Ficou na dúvida? Saiba como identificar os policiais e viaturas de forma rápida.
Além disso, fique ligadx aos direitos do cidadão durante a abordagem e do que o policial não pode fazer. Abaixo, a lista segundo a “Cartilha do Ministério Público: Diretrizes para uma polícia cidadã”:
O cidadão tem o direito de:
- Não ser submetido à abordagem e à revista na rua sem existência de suspeitas fundamentadas (isso não inclui corte de cabelo ‘chavoso’);
- Não dizer da onde vem, pra onde e com quem vai;
- Perguntar o nome do policial, sua matrícula, lotação, posto, graduação ou cargo;
- Ficar em silêncio durante seu interrogatório;
- Ter sua integridade física preservada, ainda que tenha acabado de cometer um crime;
- Mas, se apresentar qualquer tipo de lesão provocada por terceiros, deve ser levado imediatamente ao Instituto Médico Legal (IML).
O policial não pode:
- Desrespeitar, xingar, ameaçar (fique atento ao teor dos xingamentos: podem ser racistas, o que configura outro crime);
- Pressionar a confissão de um crime;
- Profissional do sexo masculino revistar mulheres;
- Constranger o cidadão durante a revista. É proibido o policial mandar tirar a roupa no meio da rua ou exigir que fique com a mão para trás ou para o alto depois de revistada;
- Levar o cidadão à Delegacia pelo simples fato de não estar portando RG ou qualquer outro documento de identificação;
- Mandar a pessoa sair correndo sem olhar para trás.
*nomes trocados para preservar a identidade das vítimas