Criticado pela ação repressiva a usuários no centro de São Paulo, prefeito fez gravação para dizer que não vai recuar
As ações recentes da prefeitura de São Paulo e do governo do estado na Cracolândia foram criticadas por especialistas em saúde, movimentos sociais, moradores e até mesmo pela ex-secretária de Direitos Humanos do município, Patrícia Bezerra, que pediu demissão por discordar das medidas. Além da repressão policial, que dispersou usuários no dia 21 de maio, a demolição de um imóvel na área, promovida pela prefeitura dois dias depois, fez um prédio vizinho desabar, ferindo três pessoas.
Em meio às críticas, o prefeito João Doria (PSDB) gravou um vídeo, divulgado em suas redes sociais, para se defender. Nele, afirma que não irá recuar e tenta justificar alguns dos fatos que ocorreram. O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública – verificou seis frases ditas por Doria na gravação. Procurada para indicar as fontes das afirmações feitas pelo prefeito, a Secretaria Especial de Comunicação, responsável pela assessoria de imprensa da prefeitura, disse que “todas as frases enviadas são de autoria do prefeito João Doria”, sem indicar documentos ou dados que tenham sido usados para embasá-las.
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“A Cracolândia fisicamente deixou de existir.”
No início do vídeo, o prefeito João Doria afirma que a Cracolândia não existe mais. A ação da Polícia Civil, do governo do estado e da Prefeitura no dia 21 de maio e realmente retirou usuários de drogas do cruzamento da rua Helvétia com a alameda Dino Bueno, no centro de São Paulo. Mas os dependentes se espalharam pela cidade e a maior parte deles migrou para a praça Princesa Isabel, no centro, a duas quadras do local. Logo, é exagerado dizer que “a Cracolândia fisicamente deixou de existir”.
Embora o termo “Cracolândia” seja usado há bastante tempo e tenha ligação com uma grande concentração de dependentes de crack na região da Luz – o fluxo –, jamais se referiu a uma zona específica e bem delimitada dentro do bairro. Ao longo dos anos, sua localização foi alterada mais de uma vez por conta da repressão policial. “A Cracolândia é um grupo de pessoas”, afirma o ativista Raphael Escobar, da organização A Craco Resiste. Segundo ele, há cerca de dois anos o grupo ficava na Alameda Cleveland e, ao longo do tempo, houve pelo menos oito mudanças de local.
Contagens realizadas pela Guarda Civil Metropolitana após a operação de 21 de maio apontaram para o aumento da concentração de usuários na praça Princesa Isabel. Cinco dias depois, já havia 600 pessoas naquele ponto. O lugar foi escolhido para uma nova operação policial em 11 de junho, que novamente dispersou os usuários pela área, mas por um período mais curto. Terminada a ação, no entanto, eles voltaram a ocupar a praça.
Ao ser informada de que a checagem concluiu que a afirmação de Doria é falsa – uma vez que a praça Princesa Isabel se transformou no novo ponto de concentração de dependentes –, a Prefeitura enviou nota em que não menciona o local ou as várias migrações do fluxo que já ocorreram: “A declaração é verdadeira. A chamada Cracolândia localizada no quadrilátero da região da alameda Cleveland com a rua Helvétia, alameda Dino Bueno e largo Coração de Jesus realmente deixou de existir. Alguns usuários foram para outras localidades do centro de São Paulo, mas estão sendo diariamente acompanhados por equipes da saúde e assistentes sociais do Estado de São Paulo e Prefeitura. Equipes da assistência social da Prefeitura de São Paulo desde o dia 21 realizaram 12.687 abordagens na região da Luz. Deste total, houve 7.049 encaminhamentos para acolhimento nos equipamentos da rede assistencial, como o Complexo Prates e o Centro Temporário de Acolhimento (CTA), e 5.638 recusas de atendimento. Apenas na última quinta-feira (8), foram feitas 519 abordagens, com 323 acolhimentos e 196 recusas. A Unidade Emergencial de Atendimento passou a operar a partir das 18 horas desta quinta-feira (8) na Rua General Couto de Magalhães, região central. Na primeira noite, 34 pessoas pernoitaram no equipamento, sendo 33 homens e uma mulher. A estrutura oferece espaços de descanso, banheiros, refeitório e consultórios para atendimento de saúde e psicossocial.”
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“[A Cracolândia] era o maior supermercado de drogas da América Latina e um dos maiores do mundo.”
O prefeito João Doria não forneceu dados que comprovem sua afirmação e a reportagem não localizou estudos ou pesquisas que possam ampará-la. Procurada pela reportagem, a Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura de São Paulo disse não saber qual a fonte deste dado. Por isso, a frase foi considerada como impossível de provar.
Procuramos pessoas que trabalham na região da Cracolândia para questionar se há estudos que mostrem que na área havia o “maior supermercado de drogas da América Latina”. Raphael Escobar, ativista da organização A Craco Resiste, afirmou em entrevista ao Truco não conhecer nenhum estudo deste tipo.
O balanço da operação realizada pelo Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) também não demonstra um tamanho recorde do comércio de drogas na região. De acordo com dados do órgão, na operação do dia 21 de maio “foram apreendidos 12,3 quilos de crack, 6,5 quilos de maconha, 655 gramas de cocaína, 6 gramas de haxixe, 18 gramas de ecstasy, dois micropontos de LSD, 2 quilos de lança-perfume, além de R$ 49 mil, dois revólveres e três pistolas”. Para efeitos de comparação, um único adolescente foi apreendido em Maceió com 10 quilos de crack em maio.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da prefeitura contestou o resultado da checagem: “Pode não ser possível provar a informação, mas também é impossível desconstruí-la. No entanto, prevalece, em nossa visão, a observação de que a antiga Cracolândia era, sim, um dos maiores polos de vendas de drogas do mundo. Impossível desconstruir.”
“Durante duas décadas, poucas tentativas [de resolver o problema da Cracolândia] foram feitas e não funcionaram.”
É um erro dizer que poucas tentativas foram feitas para resolver o problema da Cracolândia. Desde a década de 1990, diversas operações foram realizadas na região para combater o tráfico de drogas ou auxiliar usuários. Doria também desliza ao afirmar que os programas “não funcionaram”: uma pesquisa feita pela Open Society Foundation mostra que os beneficiários do programa De Braços Abertos reduziram o consumo de crack, o que demonstra que a ação foi eficaz em seu objetivo de redução de danos. Por isso, a frase do prefeito foi classificada como falsa.
A grande amostra de operações realizadas na região, registradas em jornais da época, comprova o erro do prefeito ao alegar que “poucas tentativas foram feitas”. O estudo realizado pela Open Society Foundation em janeiro de 2017 mostra que “várias iniciativas foram tentadas pelos poderes públicos ao longo dos anos 1990 e 2000 para impedir a fixação de usuários nesse espaço urbano central”.
Pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP, o psicólogo Thiago Calil da Costa é autor de uma tese que investiga a origem da Cracolândia da região da Luz e o histórico de intervenções adotadas na região. Em seu estudo, ele afirma que “o uso e comércio de crack se territorializou na região da Luz desde a década de 1990, provavelmente devido à degradação do bairro após a mudança de localização da rodoviária, que saiu da região em 1982”.
Registros dos principais jornais de São Paulo também mostram que o problema do crack na Luz existe desde os anos 90. No acervo do jornal O Estado de S. Paulo a primeira menção ao termo ‘cracolândia’ é de agosto de 1995. Na reportagem o jornal diz que em “20 dias, membros da Delegacia de Repressão ao Crack prenderam 48 pessoas em 30 flagrantes”. O órgão criado pelo governo do estado, na época comandado por Mário Covas (PSDB), foi a primeira ação registrada contra o crack na região.
Anos depois, em 1998, a Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP) contabilizava cerca de 400 crianças e adolescentes entre os moradores de rua da área. Em novembro daquele ano, foi registrada uma denúncia da OAB que deu origem a ações conjuntas de órgãos da prefeitura e do governo do estado na região da Cracolândia no ano seguinte.
As ações de 1999 estão documentadas no acervo da Folha de S.Paulo. Em abril de 1999, o periódico noticiava na capa a seguinte manchete: “Repressão provoca a expansão da Cracolândia”. No texto, o jornal avalia que a “ação policial faz traficantes mudarem local de atuação e ampliarem a fronteira da droga” e que “com a repressão, diminuiu o número de consumidores que perambulam pelas ruas”, mas “nem por isso o tráfico diminuiu.” Na época, o prefeito era Celso Pitta (PPB) e o governador, Mário Covas.
Durante a gestão seguinte, de 2001 a 2004, a prefeita Marta Suplicy (PT) pediu empréstimos a bancos internacionais para financiar a recuperação do centro da cidade. Em 2004, no último ano de seu mandato, foi firmado um empréstimo de US$ 100 milhões com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Apesar disso, na gestão da petista não houve grandes operações policiais na região, tampouco registro de ações sociais e de saúde.
A primeira grande operação policial realizada na Cracolândia foi a Operação Limpa, em 2005, sob a gestão do então prefeito José Serra (PSDB). Esta operação fez com que a concentração de usuários se mudasse para a praça Júlio Prestes. Uma matéria da Folha de S.Paulo publicada em abril daquele ano mostra que a eficácia da iniciativa foi baixa. “Na semana da Operação Limpa, 496 crianças foram encaminhadas para casas de acolhida. Uma semana depois, 414 já estavam de volta às ruas. O restante permaneceu no sistema”, atesta a reportagem. A operação fazia parte do Projeto Nova Luz, que pretendia recuperar a área com investimento público e privado.
Sob a gestão de Gilberto Kassab (DEM), houve mais tentativas de acabar com a Cracolândia. A Operação Centro Legal teve início em 2009 e instituiu novas formas de avaliação de resultados, reunindo ações policiais, sociais, de saúde e da Guarda Civil Metropolitana. Em 23 de julho de 2009 a principal chamada na capa de O Estado de S. Paulo era “Cracolândia: operação frustrada”. Na legenda da foto, o jornal destaca que “a ideia era revitalizar a área, mas seis horas depois que a ação começou, os viciados voltaram”.
A última grande iniciativa pública na região antes do lançamento do programa De Braços Abertos foi a Operação Sufoco, que estreou em janeiro de 2012 e foi duramente criticada pela intensificação da repressão policial. O resultado na ocasião também foi a dispersão dos usuários pela região central. Em 2012, a Folha de S.Paulo noticiou que “os dependentes de drogas que costumavam se aglomerar na rua Helvétia migraram para outros pontos da região, como a praça Princesa Isabel”.
Um relatório da Open Society Foundation baseado em projetos voltados para três cracolândias brasileiras avalia que essas ações em São Paulo tiveram pouca eficácia e contribuíram apenas para a dispersão dos usuários. “Em comum, tais esforços apostaram numa mesma estratégia: repressão a esses sujeitos e revitalização do espaço urbano – o que, visto retrospectivamente, contribuiu tão somente para a consolidação de uma territorialidade itinerante que ficou rotulada popularmente como cracolândia, sem efetivar melhorias nas condições de vida e de saúde dessas pessoas que permaneceram circulantes, em grande número, pelo local”, destaca o documento.
Em janeiro de 2014, durante a gestão de Fernando Haddad (PT), teve início o programa De Braços Abertos, que visava a construir uma rede de serviços para atendimento aos usuários. O programa foi fundado na ótica da redução de danos por meio da oferta de moradia e emprego. De acordo com pesquisa feita pelo Datafolha em julho de 2016, 69% da população paulistana apoiava a ação, mas 45% dos entrevistados a considerava pouco eficiente.
Apesar disso, dados mostram que o programa foi eficaz em seus objetivos principais. Uma pesquisa de avaliação do programa De Braços Abertos feita pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas concluiu que a iniciativa contribuiu para a redução do uso de drogas pela maioria dos beneficiários. De acordo com a pesquisa, feita em 2016, 58% dos beneficiários do programa eram homens e 39% tinham entre 30 e 39 anos. À pesquisa, 67% deles afirmaram ter reduzido o uso de crack após ingressar no programa. Foram ouvidos 80 beneficiários da ação.
Para 95% dos entrevistados, o Braços Abertos teve impacto positivo ou muito positivo em suas vidas. O levantamento, realizado por assistentes sociais, indica que o número médio de pedras consumidas pelos beneficiários caiu de 42 para 17 por semana, uma redução de 60%. Antes de fazerem parte do programa, 51% deles já havia realizado algum tipo de tratamento.
Ainda que o resultado do programa seja positivo, dados do governo estadual mostram que a população na região da Cracolândia aumentou 160% entre abril de 2016 e maio de 2017. Os números são de um levantamento feito pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social em parceria com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD).
A pesquisa mostra que a média de frequentadores do fluxo, local da Cracolândia onde se concentram os usuários, subiu de 709 pessoas em abril de 2016 para 1.861 pessoas em maio deste ano, um aumento percentual de 160%. O levantamento foi concluído em 13 de maio de 2017, uma semana antes da operação policial comandada pelas gestões Geraldo Alckmin e João Doria.
Apesar do crescimento no número de frequentadores da Cracolândia, o estudo da secretaria estadual mostra que nem todos os entrevistados são usuários de crack: cerca de 66,5% deles consome crack, enquanto 13,2% afirmam não consumir nenhuma droga. O documento não traz nenhum dado a respeito do aumento ou diminuição do consumo de drogas por parte dos beneficiários do programa De Braços Abertos, o que poderia confrontar os dados que demonstram os progressos dessa ação.
A análise dos fatos mostra, portanto, que o prefeito João Doria está incorreto ao afirmar que foram feitas poucas tentativas de resolver a situação da Cracolândia no centro de São Paulo. Desde os anos 90 diversos programas foram instaurados e intervenções policiais ocorreram em várias ocasiões.
Doria afirma ainda que os programas “não funcionaram”, o que também está incorreto, já que os dados mostram que o De Braços Abertos demonstrou eficácia em seus objetivos. O aumento de frequentadores da Cracolândia não está necessariamente ligado ao fracasso do programa.
A prefeitura discordou do resultado da checagem, sem mencionar a avaliação dos resultados do programa Braços Abertos: “Segundo investigação do Denarc, o quadrilátero onde se localizava a chamada Cracolândia comercializava por mês aproximadamente R$ 15 milhões. No mesmo local eram cometidos crimes como: abuso sexual, trabalho análogo a escravidão, exploração de crianças, sequestros, assassinatos e tráfico de drogas. Segundo a pesquisa realizada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) encomendada pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, o número de usuários de crack que frequentavam a região teve aumento de 160% no último ano. Ou seja, passou de aproximadamente 700 frequentadores em abril/maio de 2016 para a marca de 1.800 frequentadores em abril/maio de 2017. Baseado nestes dados é falsa a alegação da Agência Pública e precisa a declaração do prefeito.”
“Alguém pode dizer: ‘Espalharam-se pela cidade’. Nós já tínhamos várias cracolândias em São Paulo.”
O prefeito está correto ao afirmar que a cidade de São Paulo já tinha diversas cracolândias em seu território. Doria ignora, contudo, que a ação policial promovida durante sua gestão de fato fez com que os dependentes químicos se espalhassem pela região central da cidade e se concentrassem em outros pontos de uso de drogas, como a praça Princesa Isabel, situada a duas quadras do cruzamento da alameda Dino Bueno com a rua Helvétia. Por isso, a frase foi classificada como distorcida, já que os dados foram usados pela afirmação para produzir uma falsa interpretação da realidade.
Registros feitos pela imprensa e pela própria prefeitura entre 2013 e 2015 mostram já havia na cidade diversas regiões de uso de crack. Um mapeamento feito pela Secretaria Municipal de Saúde entre novembro de 2013 e janeiro de 2014 registrou 30 pontos de uso frequente de crack na cidade. Nestes lugares foram identificados grupos de pelo menos 30 pessoas que permaneceram no local por ao menos quatro meses. Os registros foram confirmados com imagens da Guarda Civil Metropolitana (GCM).
Mais tarde, em maio de 2014, a Veja fez uma matéria com base no estudo da prefeitura. A reportagem visitou 25 cracolândias e conseguiu localizar usuários em 13 destes pontos. A Folha de S.Paulo também percorreu, em março de 2015, 15 dos 30 pontos mapeados pela prefeitura e confirmou a concentração de usuários nestes locais.
Portanto, Doria acerta ao dizer que várias cracolândias já existiam na cidade antes de sua intervenção na região da Luz. Isso não significa que a intervenção não fez com que os usuários se espalhassem e dessem origem a novos pontos de uso de crack.
Em maio deste ano, cinco dias após a operação policial na Cracolândia da Luz, um mapeamento da GCM identificou 22 pontos de concentração de usuários de crack nas proximidades. Os pontos registrados pela GCM não coincidem com os identificados em 2013 pelo mapeamento da prefeitura, o que demonstra a criação de novos pontos após a ação policial em maio.
O secretário estadual de Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro, afirmou que a GCM localizou cerca de 340 pessoas espalhadas pela área próxima ao local anterior da Cracolândia e em pontos mais distantes, como na Santa Cecília e Santa Ifigênia, no dia do mapeamento. O secretário municipal da saúde, Wilson Pollara, afirmou que a dispersão já era esperada.
Sem discutir o aumento da concentração de usuários na praça Princesa Isabel e em outros pontos pela cidade em que isso não ocorria antes, a prefeitura criticou a conclusão da checagem: “A própria repórter assume que existiam várias ‘cracolândias’ pela cidade de São Paulo. Sendo assim é verdadeira a alegação do prefeito. E distorcida a análise desta declaração.”
“Inicialmente houve sim a necessidade do envolvimento da polícia do estado de São Paulo, a Polícia Civil, numa ação para combater o narcotraficante.”
A ação policial que ocorreu no dia 21 de maio na Cracolândia não fazia parte dos planos da Prefeitura. Por isso, a afirmação foi classificada como distorcida. A ideia inicial do projeto Redenção não era envolver a polícia. Isso foi dito tanto pelo secretário de governo, Julio Semeghini, como pelo secretário de Saúde, Wilson Pollara, em reunião do projeto Redenção de que participaram o Ministério Público Estadual, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e movimentos sociais, realizada cinco dias após a operação.
Toda a responsabilidade foi atribuída ao governo do estado. “A ação é da polícia. Isso é coisa de segurança. É do Estado. E a decisão foi deles. Não houve ‘Dia D’. O que houve, na verdade, foi essa ação, que foi totalmente diferente do nosso projeto”, disse Semeghini. Já Pollara afirmou que não soube da ação policial antes que ocorresse. “A situação policial foi feita sob sigilo. Não tivemos nenhum tipo de informação que ela iria ser feita. Para mim, não vazou.”
Dias depois da operação, tanto a secretária municipal de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, como o secretário-adjunto da pasta, Thiago Amparo, pediram demissão. Em uma reunião com movimentos sociais, que se tornou pública com o vazamento de um vídeo, Bezerra classificou a ação como desastrosa. Em entrevista posterior, a ex-secretária disse que sempre foi contrária à ação policial. “[A besteira foi] a ação policial. Quando eu falei com o prefeito, disse: a ação de alguma forma reverberou e ficou a conta para o município pagar. A ação foi malfeita e as reverberações também foram ruins”, disse. “O ponto nevrálgico foi derrubar um prédio com gente dentro ou fazer com que parte dele caia em cima de alguém.”
Em nota, a assessoria de imprensa da prefeitura contestou o resultado da checagem e disse que a afirmação do prefeito é verdadeira – sem discutir o posicionamento contrário de integrantes da administração: “A Prefeitura não pode intervir no serviço de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, nem no ‘timing’ dos trabalhos policiais. No entanto, avalia que a ação foi cirúrgica e bem sucedida, uma vez que não teve feridos. Cabe lembrar a reportagem da Agência Pública que poucos dias antes da ação policial que resultou na prisão de 53 pessoas envolvidas com o tráfico de drogas da região, foram flagradas pessoas com a posse de armas pesadas, além de ter havido o registro de um homicídio na Cracolândia. Fazia-se necessário e urgente uma ação ostensiva contra o tráfico de drogas e o crime organizado. Sendo assim é verdadeira a afirmação do prefeito.”
“Nós prendemos 53 [narcotraficantes na ação da Cracolândia.]”
Não é possível dizer que os 53 detidos na operação da Cracolândia no dia 21 de maio eram traficantes. Detalhes sobre as prisões ainda não são conhecidos, como a quantidade de drogas apreendida com cada pessoa e a identidade de todas elas. Além disso, apenas um julgamento pode determinar se uma pessoa é ou não traficante – até isso acontecer, todos são suspeitos. Por isso, a afirmação do prefeito João Doria foi classificada como exagerada.
O balanço divulgado pelo Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) afirma que, dos 53 detidos, 48 foram classificados como traficantes e dois foram presos por roubarem uma padaria. Três adolescentes também teriam sido apreendidos por tráfico. A polícia recolheu ainda 12,3 quilos de crack, 6,5 quilos de maconha, 655 gramas de cocaína, 6 gramas de haxixe, 18 gramas de ecstasy, dois micropontos de LSD, 2 quilos de lança-perfume, além de R$ 49 mil, dois revólveres e três pistolas.
Questionada, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública divulgou nota em que o Denarc afirma que, das “53 pessoas presas, 25 foram [detidas] fora do perímetro conhecido por Cracolândia”. Ou seja, mais da metade não estava nesta área. “As 48 pessoas foram detidas por tráfico de drogas, sendo a maioria em flagrante, ou seja, foram surpreendidas com drogas ilícitas e outros elementos que as enquadraram no artigo 33 da Lei 11.343, conhecida como Lei de Drogas. As demais foram presas por ordem judicial.” A Lei de Drogas é criticada por especialistas, umas vez que não é necessário comprovar o dolo (intenção). Com isso, usuários podem ser enquadrados como traficantes.
De acordo com o Denarc, “as pessoas acusadas haviam sido filmadas e fotografadas nos oito meses que antecederam a operação, na atividade clandestina do tráfico de drogas, visando à produção de provas sobre suas reais condutas, demonstrando-se inequivocamente que vendiam crack ou maconha. Todos continuam presos, seja porque os flagrantes foram convertidos em preventiva, seja porque tinham contra elas mandados judiciais de prisão.” A informação, no entanto, é controversa. Segundo Raphael Escobar, ativista da organização A Craco Resiste, pelo menos dois usuários estão entre os que foram presos no dia 21 de maio. “Está muito difícil de conseguir a identidade de todos os que foram detidos”, afirmou. “Sabemos que há pessoas que não eram traficantes.”
Os dados indicam, portanto, que a afirmação de Doria é exagerada. A assessoria de imprensa do prefeito contestou a conclusão da checagem: “A análise da reportagem é distorcida, uma vez que a ação policial não se resumiu somente aos quarteirões onde estava a antiga Cracolândia. A operação cumpriu mandados judiciais em vários endereços exteriores onde estavam acusados de tráfico de drogas envolvidos com o fornecimento de drogas à Cracolândia. Sendo assim, é verdadeira a declaração do prefeito de São Paulo.”
Entenda mais sobre a metodologia e sobre os selos de classificação adotados pelo Truco no site do projeto. Sugestões, críticas e observações sobre esta checagem podem ser enviadas para o e-mail [email protected].