Ao ganhar o prêmio de Melhor Atriz de Drama no Globo de Ouro, MJ Rodriguez, de Pose, reforça a importância de pessoas trans interpretando personagens trans nas telinhas e nas telonas
Na primeira premiação do audiovisual em 2022, no Globo de Ouro, prêmio que reconhece os melhores profissionais do cinema e da televisão dentro e fora dos Estados Unidos, uma reparação histórica foi feita depois de 78 anos: a premiação criada em 1944 só agora, em 2022, premiou uma pessoa trans. Michaela Jaé Rodriguez, a MJ Rodriguez, da aclamada série Pose, se tornou a primeira atriz trans da história a levar a estatueta de Melhor Atriz em Série de Drama.
MJ já havia feito história em 2021, ao ser a primeira atriz trans indicada ao Emmy Award na categoria de Melhor Atriz em Série de Drama, mas o prêmio ficou com a atriz cis Olivia Colman, que deu vida à Rainha Elizabeth II, em The Crown, da Netflix.
Não é só MJ que ganha ao ser a primeira pessoa trans a ser premiada em 2022, mas a sociedade também. Na real, a sociedade ganha antes mesmo das premiações: quando séries como Pose são feitas. Criada em 2018 por Ryan Murphy, responsável pelo musical Glee, que já trazia em 2009 pessoas LGBTs para o elenco principal, Pose foi produzida pelo canal FX e transmitida pela Netflix.
Ambientada em Nova Iorque, nas décadas de 1980 e 1990, durante a luta contra o HIV/Aids, a série ficcional faz uma homenagem aos ballrooms, movimento político que celebra a diversidade de gênero, sexualidade e raça. Os produtores da série acertaram ainda mais ao não escalar apenas MJ Rodriguez como atriz trans no set.
No elenco principal de Pose, MJ contracenava com Dominique Jackson (Elektra Evangelista), Indya Moore (Angel Vasquez-Evangelista), Angelica Ross (Candy Johnson-Ferocity) e Hailie Sahar (Lulu Evangelista).
Outro ponto importante de Pose é que a série era composta por imensa maioria de pessoas negras e latinas nos papéis principais, incluindo os atores cis Billy Porter (Pray Tell), Ryan Jamaal Swain (Damon Richards–Evangelista), Dyllón Burnside (Ricky Evangelista) e Angel Bismark Curiel (Esteban “Lil Papi” Martinez-Evangelista).
Assim como Pose, La Veneno, produção espanhola da Atresplayer Premium, transmitida pela HBO Max, também mostra como é possível fazer uma série sobre pessoas trans com um elenco composto por pessoas trans. A série conta a história de vida e morte de Cristina Ortiz Rodríguez, mais conhecida pelo apelido de “La Veneno”, cantora e personalidade da televisão espanhola.
A biografia de Cristina, feita pela jornalista trans Valeria Vegas, foi usada como base para o roteiro da obra. Três atrizes dão vida à protagonista da série: Jedet Sánchez, Daniela Santiago e Isabel Torres. A jornalista Valeria Vegas é interpretada por Lola Rodríguez. Sem nenhum transfake.
A primeira grande premiação para uma atriz trans aconteceu, quando o filme Uma mulher fantástica já havia feito história no Oscar, após 90 anos da maior premiação do cinema mundial: a produção chilena, que tinha a atriz trans Daniela Vega como protagonista, ganhou a estatueta de “Melhor filme estrangeiro” e se tornou o primeiro filme com uma atriz trans no papel principal a levar um Oscar para casa. Vega também fez história sendo a primeira atriz trans a participar da apresentação da cerimônia.
Antes que se perguntem se o problema não está na falta de talento de atores e atrizes trans, por isso a demora de quase 80 anos, eu já te respondo: o problema está no transfake. Para quem não está familiarizado com esse nome, o transfake é quando uma pessoa cisgênera (que se identifica com o gênero de nascimento) interpreta uma pessoa trans (que não se identifica com o gênero de nascimento) em algum filme, peça ou novela. Com isso, atrizes e atores trans perdem seus empregos e a chance de mostrar seus talentos.
As produções sem transfake estão mostrando o óbvio: quanto mais pessoas trans puderem dar vida aos personagens trans, em filmes, séries e novelas, mais prêmios essas pessoas terão, porque não é uma questão de falta de talento e sim de ausência de pluralidade de corpos, vivências, gêneros e sexualidades dentro do audiovisual.
Apesar disso, infelizmente, o transfake ainda é um assunto não superado. Ainda vemos produções com atores cis interpretando personagens trans, como nas duas últimas temporada de La Casa De Papel, sucesso mundial da Netflix, que trouxe a atriz cis Belen Cuesta dando vida à personagem Manila.
É um como se déssemos um passo para frente e dois para trás, porque essa mesma Netflix, que trouxe esse transfake em 2021, foi pioneira trazendo Laverne Cox para interpretar Sophia em Orange Is The New Black e Jamie Clayton para vivenciar Nomi em Sense8, duas das primeiras produções originais do catálogo com pessoas trans no elenco. A própria Laverne Cox encabeçou o documentário Disclosure: Ser Trans em Hollywood, que expõe a transfobia estrutural dentro de Hollywood (e também é uma produção da Netflix).
Realidade brasileira para pessoas trans no audiovisual
Não diferente da realidade do resto do mundo, no Brasil o transfake também é uma prática comum. Já vimos Rodrigo Santoro interpretar a travesti Lady Di em Carandiru (2003) e, pouco antes do manifesto dos artistas trans, Carolina Ferraz viveu uma travesti em A Glória e a Graça (2016) e Carol Duarte interpretou Ivan, homem trans da novela A Força do Querer (2016).
Em 2017, um grupo de artistas trans se reuniu para exigir o fim do transfake nas artes com o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga não ao Transfake’, se posicionando criticamente contra a estreia da peça Gisberta, de Luis Lobianco, em Belo Horizonte, em que um ator cisgênero interpreta a transexual brasileira Gisberta, brutalmente assassinada em 2006 em Portugal.
De lá para cá, dentro do audiovisual brasileiro, em filmes e séries, atores e atrizes trans têm conseguido conquistar papéis importantes nas produções e, consequentemente, serem premiados.
Um dos exemplos é o longa-metragem Alice Júnior, que conta a história da adolescente trans Alice, com os dilemas e momentos importantes na trajetória de adolescentes trans na vida escolar, como uso do banheiro, respeito ao nome social e o primeiro beijo.
Protagonizado pela atriz trans Anne Mota, o filme tem pelo menos 16 prêmios e seleções especiais. Anne, aliás, foi a primeira atriz trans, depois de 52 anos de história, a ganhar o prêmio de Melhor Atriz no maior festival do país, o Festival de Brasília, em 2019.
Curta-metragens dirigidos, escritos e interpretados por pessoas trans também têm sido premiados no país, como é o caso dos curtas Perifericú, curta ficcional que mostra, a partir da coletividade e afetividade, como ressignificar e naturalizar as periferias enquanto locais possíveis para uma travesti negra – que tem mais de 30 prêmios no circuito nacional e internacional, incluindo Festival Mix Brasil e Mostra Tiradentes.
A atriz Leona Jhovs também foi premiada com o curta Modelo Morto, Modelo Vivo, em que interpreta a protagonista Manuela, além de dirigir e também assinar junto o roteiro, e conta a história ficcional uma mulher trans, artista, que ao frequentar uma oficina de modelo vivo, desperta para sua própria beleza e potência, mesmo tendo que enfrentar dificuldades cotidianas. Entre os prêmios do curta, estão: Prêmio de Melhor Atriz na mostra Suzy Capó do VI Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás e Melhor filme LGBT do Sweden Film Awards.
As premiações não param em atores e atrizes. A roteirista e diretora Gautier Lee, de Desvirtude, foi a primeira pessoa negra e pessoa trans a ganhar prêmio de Melhor Filme por Júri Popular na Mostra Nacional do Festival de Cinema de Gramado, em 2021. O curta conta a história de Kenia, vítima de injúria racial, que precisa lidar com a repercussão do acontecimento na universidade.
Em 2020, o ator Daniel Veiga, que também é roteirista, dramaturgo e diretor teatral, ganhou o Kikito no Festival de Cinema de Gramado e em 2021 o Araibu no IV Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe como Melhor Ator no curta Você Tem Olhos Tristes de Diogo Leite.
No país que mais mata a população transvestigênere em todo o mundo, essa é a representatividade que nos importa: nos vermos nas telinhas e telonas e sermos premiados pela nossa criatividade e talento no audiovisual. Para esse mês da Visibilidade Trans, o pedido é também um grito: que as notícias de “primeira pessoa trans” a fazer algo acabem e que nossas vitórias possam ser mais frequentes.
* Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho (Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021.