Crimes de Maio de 2006: o massacre que o Brasil ignora

Com o apoio do Ministério Público, há 15 anos policiais e grupos de extermínio reagiram a um ataque do crime organizado matando 505 pessoas em duas semanas no Estado de São Paulo, mais do que a ditadura militar em 21 anos

Os Crimes de Maio completam 15 anos em 2021, até hoje não houve reparação às famílias | Ilustração: Antônio Junião/Ponte Jornalismo

Uma das maiores matanças cometidas pelo Estado na história do Brasil completa nesta semana seus 15 anos. Sem resolução e ainda desconhecidos para muitos brasileiros, os Crimes de Maio de 2006 deixaram marcas profundas na história de São Paulo e feridas abertas na vida de centenas de mães que perderam seus filhos. 

Entre os dias 12 e 21 de maio daquele ano, policiais e grupos de extermínio paramilitares — que testemunhas e outros indícios apontam serem formados também por policiais — mataram 425 pessoas e foram responsáveis pelo desaparecimento de outras quatro, os ataques continuaram após alguns dias, matando mais 80 civis. As mortes foram uma vingança contra os ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando do Capital), que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais. “Foi uma carnificina humana feita pelo Estado perante a favela e a periferia”, lembra Débora Maria da Silva, representante do Movimento Independente Mães de Maio. O filho dela, o gari Edson Rogério, foi encontrado morto, aos 29 anos, após uma abordagem policial, no dia 15 daquele “maio sangrento”, como passou a ser chamado por muitas mães.

Mães de Maio em protesto em 2015 no centro de SP lembrando os 9 anos dos Crimes de Maio | Foto: Rafael Bonifácio

Em duas semanas, os Crimes de Maio deixaram mais vítimas do que as 434 pessoas mortas e desaparecidas deixadas pela ditadura militar ao longo de 21 anos. Mais de quatro vezes o massacre do Carandiru, que tirou a vida de 111 detentos em 1992. Mais de 20 vezes os 23 assassinados na chacina de Osasco, a maior da história de São Paulo, ocorrida em 2015. E foram 18 vezes vezes maior do que a chacina do Jacarezinho, a operação policial mais letal da história do Rio.

Apesar de tal magnitude, até hoje os crimes não foram solucionados e poucas famílias foram reparadas, enquanto outras ainda buscam respostas a respeito de seus entes queridos que simplesmente desapareceram. “Esses crimes representam a negação dos corpos da maioria pobre, de moradores de favela, é uma afronta à nossa Constituição praticada pelo Estado de São Paulo, que não foi punido. Foi um dos maiores massacres da história contemporânea, que chamou muita atenção no pós-ditadura e com o mesmo requinte de crueldade. Foi uma violação incontestável, crime contra a humanidade”, ressalta Débora.

O ex-governador de SP Claudio Lembo (DEM) em sua posse em 2006 | Foto: Alesp

Os comandantes da polícia que executou os Crimes de Maio eram o governador Cláudio Lembo (DEM, então PFL) — que havia assumido o governo menos de dois meses antes, após Geraldo Alckmin (PSDB) renunciar ao cargo para concorrer à Presidência — e o secretário de Segurança Pública, Saulo de Abreu Castro Filho. Nenhum deles aceitou falar com a reportagem.

Executados nas ruas pela Polícia Militar do governo de São Paulo, os Crimes de Maio contaram, ainda, com o apoio decisivo do Ministério Público Estadual de São Paulo. Logo após a matança, 79 promotores de justiça assinaram um ofício em apoio às ações da polícia. Até hoje, só dois promotores se disseram publicamente arrependidos de terem colocado sua assinatura no documento.

Os estopins dos Crimes de Maio

Um dos estopins da série de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) que iniciou os Crimes de Maio foi o sequestro do enteado de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo da facção, libertado após o pagamento de um resgate de R$ 300 mil, em março de 2005. 

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O sequestro fez parte de uma série de extorsões contra familiares de presos do PCC cometidas por policiais de Suzano (Grande SP), comandados pelo investigador Augusto Peña, de acordo com investigações da Polícia Civil. 

Razões eleitorais também teriam sido um dos motivos dos ataques da organização criminosa. De acordo com o relatório São Paulo Sob Achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006, produzido em 2011 pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard, nos EUA, em parceria com a ONG Justiça Global, e que tem entre seus autores a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, os líderes da facção não queriam Geraldo Alckmin na presidência do país, que disputaria o cargo em 2006. 

Sandra Carvalho, coordenadora da ONG Justiça Global e uma das pesquisadoras de São Paulo sob Achaque, chama a atenção para a corrupção praticada por agentes públicos. “Ela foi uma das principais motivações do PCC para realizar os ataques de 2006. Durante a nossa pesquisa colhemos informações consistentes de que a cúpula do governo de SP sabia dos planos do PCC e decidiu e tentou coibir os ataques sem gerar alerta público para evitar um custo político”, disse à Ponte.

Um terceiro aspecto levado em conta pela pesquisa São Paulo Sob Achaque foi o anúncio de transferência de 765 homens do PCC, entre eles os líderes da facção, para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau.

Com isso, a cúpula do PCC iniciou uma série de rebeliões que atingiu 74 dos 105 presídios de regime fechado no Estado, entre eles, a Penitenciária de Avaré l (de onde Marcola foi retirado) e a Penitenciária de Iaras, e deflagrou uma onda de ataques a tiros contra agentes públicos nas ruas. 

As rebeliões em diversas unidades prisionais foram de 12 a 15 de maio. Nas ruas, os ataques do PCC concentraram-se entre os dias 12 e 14 de maio, quando 41 agentes da segurança pública foram mortos e outras 14 pessoas morreram em supostos tiroteios na Grande SP e na Baixada Santista.

Quando os ataques do PCC já diminuíam, aconteceu um violento revide promovido por policiais militares vestindo a farda das ações oficiais ou a touca ninja dos grupos de extermínio. O alvo do revide eram jovens pobres das periferias, escolhidos aleatoriamente, e não pessoas ligadas ao PCC — mesmo porque, em 15 de maio, a cúpula da facção fez um acordo de trégua com o governo estadual, sempre negado pelas fontes oficiais.

Segundo um estudo do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana), mais da metade das vítimas dos dos Crimes de Maio eram jovens negros, 80% delas tinham até 35 anos e apenas 6% possuíam alguma passagem pela polícia.

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Em uma ação civil pública contra o Estado de São Paulo, movida somente em 2019, 13 anos após os Crimes de Maio, os promotores Eduardo Ferreira Valério e Bruno Orsini Simometti afirmam que “pouco tempo após os primeiros ataques realizados pelo PCC nos dias 12 e 13 de maio de 2006, a Polícia Militar e grupos de extermínio, possivelmente também formados por policiais militares, começaram a revidar as mortes dos policiais vitimados”. Segundo os promotores, “foi a partir deste momento que civis começaram a morrer com maior frequência”.

“A atuação da Polícia Militar e dos grupos de extermínio se deu nas periferias, vitimando aleatoriamente pessoas pobres, sem vínculos com o crime organizado”, afirmam os promotores na ação. Os dois promotores apontam “indícios concretos de que houve extermínio, a partir de estudos criminalísticos produzidos sobre o caso”, como o fato de que, das 564 vítimas, 484 levaram tiros na cabeça.

Ou seja, a maior parte das mortes dos Crimes de Maio não ocorreu em confrontos. A morte de civis começou depois, quando os ataques contra agentes de segurança tinham escasseado. A partir de um relatório do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), que analisou os laudos das mortes, o estudo São Paulo sob Achaque aponta que as vítimas apresentavam “marcas compatíveis com disparos a curta distância, orifícios de entrada dos disparos na nuca das vítimas e disparos de cima para baixo, e concentração de disparos nas áreas de  alta letalidade”, indicando “sinais claros de execução e não de confronto”.

Imagem: Antônio Junião/Ponte Jornalismo

A pesquisadora Aline Lúcia Rocco Gomes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que participou do estudo Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da antropologia forense e justiça de transição, relatou que várias evidências apontavam para um massacre. “Ficou comprovado no nosso relatório que foram execuções sumárias, muitas pessoas morreram baleadas com a mão no rosto, com tiros na cabeça, ou agachadas, de costas, sendo pegas desprevenidas, afirma a pesquisadora.

Além disso, Aline destaca que houve um conjunto de testemunhas que identificaram os membros dos grupos de extermínio daqueles dias como sendo policiais. “Geralmente em 90% dos casos os familiares sabem que foram policiais, eles convivem diariamente com essas pessoas, apesar de não aparecer no boletim de ocorrência, pelo medo e da falta de proteção do Estado. É o próprio Estado matando. Testemunhas que se colocaram pra falar foram assassinadas, outras fizeram testemunhos mas voltaram atrás.”

Outra evidência que ilustra as execuções, de acordo com os pesquisadores da Unifesp, seria a chegada da polícia na alteração e destruição das provas. “Outro elemento comum nesses ataques era a rápida chegada de viaturas policiais, em muitos casos sem tempo suficiente para terem sido acionadas, e a retirada dos corpos, a remoção de cápsulas de projéteis e alteração da cena do crime para dificultar a investigação das mortes”, diz Aline.

As vítimas

Uma das vítimas dos Crimes de Maio que não tinha nenhuma relação com o PCC e tampouco com a polícia iria se chamar Bianca. Era um bebê, baleado ainda no útero da mãe, Ana Paula Gonzaga dos Santos.

Grávida de 9 meses, com uma cesárea marcada para o dia seguinte na Santa Casa, Ana Paula saiu de casa com o marido, Eddie Joey de Oliveira, na noite de 15 de maio, em Santos (SP), para tomar uma vitamina em uma padaria próxima e comprar um leite para a primeira filha do casal, de um ano. Foi quando um grupo de homens encapuzados saiu de um carro e atirou nas pessoas que passavam. Segundo testemunhas contaram à família de Ana, Joey gritou “sou trabalhador” para os encapuzados e sua esposa se colocou na frente dele, certa de que não atirariam em uma mulher grávida.

Na discussão com os atiradores, Ana arrancou o capaz de um deles e o reconheceu como um policial militar. O homem atirou na cabeça de Ana. Depois que Eddie se debruçou sobre o corpo caído da mulher, os homens dispararam nele por trás, na cabeça e nas costas. Antes de partir, o homem voltou-se para atirar na barriga de Ana e dizer “filho de bandido, bandido é”. Segundo os laudos médicos, os disparos atingiram Bianca dentro do útero. A menina de 48 centímetros, nunca nascida, foi baleada na mão e no joelho esquerdo.

A mãe de Ana Paula, Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, contava que a identidade dos assassinos de sua filha, do seu genro e da neta que nunca chegou a respirar era conhecida na região. O grupo de policiais militares teria usado aquelas mortes como um espantalho para impor medo às pessoas do bairro, dizendo: “A gente mata até mulher grávida, quanto mais vocês”.

Os inquéritos sobre as mortes foram arquivadas pela Polícia Civil, sem apontar responsáveis. Já Vera tornou-se um dos primeiros membros e uma das vozes mais ativas do movimento Mães de Maio, até morrer, em 2018, num mês de maio.

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A luta de Vera ainda permanece viva em Débora Maria da Silva, uma das fundadoras do movimento Mães de Maio, e uma das principais vozes da luta pelos direitos humanos do Brasil. 

Foi também na noite de 15 de maio que o filho de Débora, Edson Rogério Silva dos Santos, saiu de casa para pegar um remédio na casa da mãe. Ele havia feito uma cirurgia na boca e estava se recuperando. Gari, no dia seguinte teria que trabalhar limpando as ruas e morros da cidade de Santos. 

Naquela segunda à noite, sua mãe insistiu para que ele ficasse em casa, em meio ao terror instaurado na Baixada Santista por conta dos ataques da polícia, mas Rogério resolveu ir. Voltando para a casa, ele parou em um posto de gasolina para abastecer sua moto, quando foi enquadrado por policiais, que o agrediram e o ameaçaram, mas o deixaram ir embora. Um amigo de Rogério que iria ajudá-lo a voltar para casa avistou as viaturas de longe e, chegando ao local, trocou de moto com o gari, que seria executado pouco tempo depois, subindo o morro da Caneleira. 

Já aflita com os últimos acontecimentos da cidade, Débora decidiu ouvir um programa de rádio policial, que anunciou o nome de seu filho como um dos assassinados daquela noite.

Hoje ela analisa de forma crítica o acontecimento. “Os ataques que o Estado denomina como ‘ataque do PCC’ foi uma história que não foi contada direito, houve um acordo planejado com lockdown para matar a população que estava no meio da rua, jovens e mulheres que não conseguiram ficar dentro de casa porque eles tinham o direito de ser livres, direito de ir e vir.” 

Para além da perda dos filhos das Mães de Maio, Debora diz que a forma como os crimes foram tratados é um retrato do abandono do Estado perante os familiares. “Além de terem dizimado nossos filhos, os crimes causaram repúdio das mães para com o Estado, pelo abandono dos filhos que ele deixou órfãos, causou a aceleração da violência em todo o nosso país.”

O abandono pelo Estado também é sentido pela diarista Ilza Maria de Jesus Soares, de 62 anos. Seu filho Thiago Roberto Soares, estudante de ensino médio, foi assassinado aos 19 anos na periferia santista. Ela conta que os autores do homicídio foram policiais: “Uma das testemunhas viu a bota que eles usavam”.

Thiago passou o Dia das Mães, 14 de maio, com ela. À noite, saiu para encontrar com alguns amigos em uma lan house. “Ele me deu feliz Dia das Mães bem cedo de manhã, ele era muito brincalhão e sorridente”, lembra Ilza. Sempre que conta o que aconteceu com seu filho, ela relata que sente as dores no que ela chama de “cicatriz da alma”. “São 15 anos, mas sabe quando mexe com a ferida? Na pele cicatriza uma ferida, mas na alma nunca mais”, diz.

Ilza lembra os dias de terror que viveu em Santos naquele ano. “O Estado não matou só meu filho, matou a mim, a minha família, como matou muitas mães que tiveram seus filhos mortos. Eu vi com os meus próprios olhos, papelarias, supermercados, escolas, tudo fechando, ônibus sendo queimados, nesses dias eu vi horror e foi quando eu vi um lavramento de sangue na cidade de Santos. Eu via os aviões passando bem baixo perto dos telhados, mal sabia eu que eu seria uma das mães que teria seu filho com o corpo ao chão”.

As cenas de terror continuaram depois que Ilza recebeu a notícia da morte de seu filho por telefone e foi à Santa Casa de Santos. “Nesse dia vi vários pais chegando atrás dos seus filhos, eu não consegui entrar para reconhecer o corpo, uma das atendentes perguntou qual o nome do meu filho e se ele tinha tatuagem, aí eu disse que tinha com o meu nome, minhas pernas não aguentaram, não dava mais para eu continuar”.

A revolta de Ilza ainda persiste. Ela conta que criou seus filhos com a cabeça em pé. “Eu sempre dizia para o meu filho, ‘se você não deve, se você estiver certo, não abaixe a cabeça para ninguém’ e eu não vou abaixar a minha enquanto eu tiver vida. Eu vou lutar pelos meus direitos”.

Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio, durante protesto em 17/11/2016 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

No dia 15, durante o enterro de seu filho no cemitério da Areia Branca, na zona noroeste de Santos, Ilza viu Débora pela primeira vez. Meses depois, Débora foi à sua casa em busca de uma união das mães por justiça para as mortes de seus filhos. “No dia do enterro do meu filho, o filho dela seria assassinado. Depois a Débora aparece em casa e as mães se juntaram.”

Começava ali um novo capítulo na vida de Ilza, que iria se dividir entre o trabalho de diarista e os protestos nas ruas de São Paulo, como integrante das Mães de Maio. “Eu lamento muito por estar pagando imposto para eles comprarem armamentos, balas, para assassinarem o pobre, preto e periférico. Daí a luta do meu dia a dia, é difícil fazer uma passeata e você ser xingada, as pessoas não te respeitam, você é massacrada. Enquanto eu estiver viva com saúde, quero expor nossa situação.”

Pânico em SP

Assim como na Baixada Santista, a cidade de São Paulo também entrou em pânico e a população passou a evitar sair de casa à noite, com medo da onda de chacinas que atingia sobretudo os bairros mais pobres. No dia 14 de maio, um dos casos mais marcantes dos Crimes de Maio aconteceu: a chacina do Parque Bristol

O crime ocorreu por volta das 22h30 da noite, quando cinco jovens que conversavam na rua Jorge de Morais, no Parque Bristol, na zona sul da cidade de São Paulo, foram atacados por um grupo de encapuzados. Edivaldo, Eduardo, Israel, Fernando e Fábio, com idades entre 21 e 25 anos, morreram alvejados na porta de casa. A investigação sobre o caso foi arquivada pelo Ministério Público de São Paulo em 2008. 

Segundo a ONG Conectas Direitos Humanos, o Ministério Público do Estado de São Paulo foi omisso tanto na investigação quanto no controle do inquérito policial do caso do Parque Bristol. “O órgão era responsável por cruzar informações entre as mortes ocorridas no período para identificar similaridades que apontassem para o envolvimento de agentes de segurança nos assassinatos, no entanto, o MP/SP não realizou esse cruzamento. Além disso, o MP não acompanhou as devidas diligências do caso, deixando um vácuo de investigação que prejudicou a responsabilização dos autores dos crimes”, diz um texto no site da entidade. 

Na segunda-feira (15), os ataques do PCC já tinham quase terminado na cidade de São Paulo, mas o pânico era tanto que a cidade de São Paulo parou. Foi quando começaram as ações em massa das polícias na periferia. Na terça-feira (16) um outro ataque deixaria a família de Francilene Gomes Fernandes, 41 anos, em desespero e em uma angústia que dura até hoje. 

Francilene Gomes Fernandes em evento do dia internacional das vítimas de desaparecimento forçado em agosto de 2018 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

Seu irmão Paulo Alexandre Gomes, então com 23 anos, foi vítima de um desaparecimento forçado naquela noite, depois que policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, o levaram com vida de Itaquera, bairro da zona leste da cidade de São Paulo. “Perder meu irmão desta forma cruel, violenta, sem termos a chance de nos despedir nos dilacerou. Não há um dia das nossas vidas que não pensamos nele”, diz a doutoranda pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que estuda a importância da articulação entre mídias alternativas e os movimentos sociais no enfrentamento à violência policial. 

Na visão da assistente social, a Justiça foi seletiva com o caso de seu irmão ao recusar uma ação por danos morais movida pela Defensoria Pública, alegando que o crime já havia prescrito. “O fato dele ser negro, periférico, não deram a devida atenção, como já é muito comum na justiça brasileira. Como é possível, alegarem prescrição de um crime permanente de desaparecimento forçado, um crime imprescritível? Essa é a Justiça do nosso país”.

Francilene chegou a parar de estudar quando a Rota desapareceu com seu irmão. Ela estava no terceiro ano de Serviço Social na PUC e ficou uma semana sem ir às aulas. Com o apoio de suas colegas de sala e das professoras, ela conseguiu se reerguer e decidiu que iria estudar mais sobre os desaparecimentos. “Fiz o TCC sobre desaparecimentos forçados desde a ditadura até a democracia, mostrando que temos uma ditadura inacabada e os desaparecimentos são uma ferramenta do Estado fascista.”

Já no mestrado ela aprofundou seus estudos sobre a violência policial e sobre os Crimes de Maio com a dissertação Barbárie e Direitos Humanos: As Execuções Sumárias e Desaparecimentos Forçados em Maio de 2006 em São Paulo. Agora no doutorado ela quer mostrar a importância da articulação entre mídias alternativas e os movimentos sociais no enfrentamento à violência policial.

O fôlego para seguir vivendo com ela diz vem da militância no movimento Mães de Maio, que ela encontrou pela primeira vez em 2007, em um evento do Cremesp sobre o primeiro ano dos Crimes de Maio. “Militar nas Mães de Maio e ser pesquisadora do tema me fazem manter a lucidez e o fôlego para luta”, revela.

O apoio do Ministério Público — e de parte do jornalismo

Os Crimes de Maio contaram com a cumplicidade do Ministério Público do Estado de São Paulo. Em 25 de maio de 2006, 79 promotores assinaram um ofício em que reconheciam “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada”.

Segundo o estudo São Paulo Sob Achaque, com essa atitude os promotores falharam ao “não manter sua preciosa isenção no momento da crise, sinalizando à Polícia Militar que eles, promotores, já teriam concluído que não houve um revide policial orquestrado após os ataques”.

À esq., o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) ao lado de Saulo Castro, sercretário da Segurança Pública em 2005; à dir., o secretário ao lado do ex-governador Claudio Lembo, que assumiu no lugar de Alckmin logo antes dos Crimes de Maio | Fotos: SSP-SP

As atitudes do Ministério Público ao longo dos anos provocam repulsa nas Mães de Maio. Débora Silva não poupa a instituição: “O MP é uma vergonha do Estado de São Paulo, quando se nega o direito de uma grávida de nove meses de ter o assassino  investigado, quando pede o arquivamento prematuro. O que ele via era a investigação do morto, mas não a investigação de quem o matou. O Ministério Público tinha o dever de investigar e foi omisso. E é omisso no controle externo das policias”. 

Na avaliação da ativista, o direito à justiça foi e é negado às Mães de Maio quando o MP tenta criminalizar os filhos mortos e as próprias mães. “Vemos um Ministério Público que tenta criminalizar as mães, criminalizar os nossos filhos, desonrando o caráter de raiz que nós temos nas nossas famílias. Ser pobre não é crime”. 

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Nesse sentido, a única solução é uma mudança profunda na instituição, segundo Débora. “O movimento Mães de Maio exige uma mudança no MP, eles não podem ser classistas, racistas e negacionistas. Levantem de suas cadeiras confortáveis, de seus sofás de couro, ou então desocupem essas cadeiras e continuem sentados nos seus sofás, mas não sentados em cima de corpos humanos com copos cheios das farras, dos privilégios e do sangue jorrados dos nossos filhos”. 

Em entrevista à Ponte em 2016, o ex-promotor Roberto Tardelli, um dos 79 promotores que assinou o documento de apoio à violência policial em maio de 2006, afirmou que seu gesto “foi um erro grave de avaliação que tivemos, dessa cultura do ódio”. Ele também diz que o mínimo que poderia dizer é que se arrependia “profunda e amargamente” de ter assinado o ofício.

Outro arrependido foi o promotor Eduardo Ferreira Valério, que em 2019 moveu uma ação civil pública pedindo a reparação dos familiares das vítimas dos Crimes de Maio. A ação, no valor de R$ 154 milhões, pedia indenização não só para os 505 civis mortos pelo Estado, mas também para os 59 agentes públicos mortos em ataques criminosos no período. Segundo a ação, “o Estado sabia que os ataques aconteceriam e, mesmo assim, deixou de avisar e alertar os policiais militares, inclusive bombeiros, que não puderam se preparar e se proteger; e, em consequência, foram pegos de surpresa e acabaram mortos”.

No texto da ação, o promotor dizia que “vale-se deste momento para retratar-se e apresentar escusas aos familiares dos muitos mortos daqueles dias” por ter assinado o ofício em apoio à violência da PM. “Aquela assinatura fora fruto dos temores decorrentes das poucas informações e do anúncio dos riscos a que estariam submetidos os agentes públicos em geral. Visto à distância e decorrido o tempo, fica evidente o equívoco daquele documento”, afirmou.

Mãs de Maio em protesto no centro de SP em 2015, marcando 9 anos dos Crimes de Maio | Foto: Rafael Bonifácio

O arrependimento do promotor, contudo, veio tarde, na visão da Justiça paulista. Ao analisar a ação, o Tribunal de Justiça de São Paulo concluiu, em primeira e segunda instância que os crimes já estavam prescritos. Agora tramitam recursos dessa ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem decisão. Valério discorda da avaliação, afirmando que, por se tratar de grave violação sistemática de direitos, os Crimes de Maio não podem ter prescrição, conforme a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. “O TJ não fez nenhuma referência a nossa linha de argumentação, como se não existisse o direito internacional, como se violações de direitos humanos e tratados internacionais que o Brasil adere não vigorassem aqui, o que é uma característica angustiante da justiça brasileira”, declarou Valério na época.

A defensora pública de São Paulo Letícia Avelar também contesta a decisão: “A gente defende que são crimes de lesa à humanidade, são imprescritíveis segundo inclusive o sistema internacional de direitos humanos. A falta de reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre esses crimes, é algo que as famílias perseguem, mais do que a indenização, a compensação em dinheiro, elas buscam justiça e a verdade”.

Assim como o MP, parte da mídia apoiou a polícia na época. O jornalista Pedro Bial, por exemplo, fez um editorial no Fantástico em apoio à polícia, veiculado em 14 de maio: “Quando erram, não os perdoamos, somos, frequentemente, implacáveis com eles. Até que, num fim de semana trágico, vislumbramos o que seria de nós sem a polícia. (…) Eles são a linha de frente da democracia. Para além de manter a ordem, sua função é garantir nossa liberdade. (…) É fácil criticá-los, são eles que morrem por nós”, disse no programa dominical da TV Globo.

O relatório da Unifesp analisou os jornais O Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo, e aponta que o Estadão se notabilizou por defender uma ação dura da polícia. “Só assumindo uma postura mais crítica a partir das inúmeras evidências que apontavam o uso excessivo da força por essa instituição. Contudo, mesmo nesse momento tratou as vítimas não vinculadas às forças policiais como ‘agressores’”. 

Em relação à Folha, os especialistas avaliam que o veículo “assumiu um discurso mais moderado” e tiveram grande destaque as matérias assinadas por André Caramante, fundador da Ponte, “que questionavam as declarações oficiais, exigiam do governo maiores informações sobre os fatos e publicaram as versões dos familiares das vítimas”.

A pesquisadora dominicana Yanilda Maria Gonzáles, professora da Escola de Serviço Social da Universidade de Chicago, EUA, que estuda há dez anos a dinâmica das polícias de Brasil, Argentina e Colômbia, avalia que ainda há uma narrativa acerca dos Crimes de Maio de que foram apenas ataques onde o protagonista foi o PCC. “Lendo os jornais em inglês e em espanhol naqueles dias, a gente só teve a impressão de uma violência generalizada, de ataques cometidos por grupos criminosos, matando policiais, e que a violência da polícia era só em confrontos com ‘bandidos’. O protagonista da violência, o único responsável pelas mortes, segundo a imprensa, foi o PCC. Poucos jornalistas reportavam sobre a violência extrajudicial do Estado, as execuções cometidas pela da polícia.”

Na época dos crimes, Yanilda fazia a pesquisa de campo para sua tese de doutorado em São Paulo, e para ela o trabalho das Mães de Maio é fundamental para que a memória real sobre os fatos ocorridos seja preservada. “A representação dos fatos pela imprensa influiu muito na interpretação que a sociedade fez da memória histórica sobre os Crimes de Maio. A memória coletiva dos Crimes de Maio ainda é incompleta, isso limita a luta pela justiça para as vítimas e também é um obstáculo à garantia de não repetição. Por isso o trabalho das Mães de Maio é tão importante.”

O Movimento Independente Mães de Maio

Uma das respostas aos Crimes de Maio de 2006 foi o surgimento do Movimento Mães de Maio, constituído por mães, parentes e vítimas de violência de Estado, especialmente da violência policial. A principal missão do movimento é a luta pela verdade, pela memória e pela justiça para todas as vítimas da violência, denunciando particularmente a violência contra os pobres, os negros e os habitantes das periferias.

A iniciativa de integrar um movimento das vítimas da violência surgiu inicialmente de três mães que tiveram seus filhos assassinados durante esse período: Débora Maria da Silva, Vera de Freitas, mãe de Mateus Andrade de Freitas, e Ednalva Santos, mãe de Marcos Rebelo Filho.

Débora Silva, coordenadora do movimento Mães de Maio, durante homenagem em maio de 2019 | Foto: Bianca Moreira/Conectas

Na luta pela verdade, uma das primeiras reivindicações do movimento foi o reconhecimento de Bianca, a criança assassinada antes mesmo de nascer, também como uma das vítimas dos Crimes de Maio. “Na época, e fundamentalmente a partir do trabalho desenvolvido pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), chegou-se a uma estimativa de 493 mortos por arma de fogo durante o período. Vera, avó de Bianca, e as outras mães reivindicavam que Bianca fosse reconhecida como a vítima número 494. Era um reconhecimento simbólico, mas de grande importância para a família de Ana Paula”, diz o estudo da Unifesp.

O movimento persistiu em meio a ataques dos órgãos estatais, como um ocorrido em 2015, quando a promotora de Praia Grande (SP), Ana Maria Frigério Molinari, declarou numa audiência judicial ter recebido a informação de que as Mães de Maio seriam formadas por mães de traficantes, que teriam passado a gerenciar biqueiras após a morte de seus filhos, e que por isso se empenhariam em denunciar “policiais que efetivamente combatiam o tráfico de drogas”. 

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Passados seis anos, a promotora nunca formalizou qualquer acusação nem apresentou provas do que dizia. Procurada pela reportagem neste ano, a promotora não quis comentar suas declarações. Além disso, a Ponte foi obrigada, por ordem judicial, a retirar do ar o vídeo que mostrava a promotora atacando as mães.

Na última sexta-feira (14/5), a ONG Conectas Direitos Humanos, junto com a Defensoria Pública e o Movimento Mães de Maio, protocolaram um pedido de providências ao presidente do Conselho Nacional do Ministério Público, Augusto Aras, requerendo a responsabilização da promotora “por sua conduta atentatória à dignidade das ativistas do Movimento Mães de Maio”. Além de medidas de retratação às ativistas do Movimento Independente Mães de Maio, o documento inclui o pedido de uma a carta de manifestação pública do Ministério Público de São Paulo, com o reconhecimento de que as palavras da promotora não correspondem à opinião institucional. Procurado pela Ponte, o CNMP não se manifestou.

Além das calúnias, a visibilidade das Mães de Maio acendeu ameaças e perseguições com o objetivo de tentar silenciar as reivindicações do movimento. Muitas de suas integrantes foram  acusadas por supostos crimes, como o de tráfico de drogas, e flagrantes forjados colocaram duas mães atrás das grades: Ednalva, em 2006, e Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, em 2008, que permaneceu presa por dois anos e meio na Penitenciária Feminina de Franco da Rocha. 

Apesar dessas tentativas de criminalização, o movimento continuou com a luta pela justiça nas diferentes esferas institucionais do país e fora dele. “Nós éramos uma andorinha só e nós acordamos um bando. Hoje a gente escuta nos quatro cantos do Brasil mães que perderam os filhos, que gritam que a polícia é assassina junto conosco engrossando esse amor, dizendo que nós temos o direito de viver e os nossos filhos também. As Mães foram procuradas para fazer formação, conseguimos fazer profissionais que até então não tinham uma visão de constituir um diploma com caráter e dignidade humana”, aponta Débora. 

15 anos de crimes sem solução

A natureza dos Crimes de Maio como massacre veio à tona no mesmo ano, por meio da análise de uma comissão independente formada por diversas entidades da sociedade civil, articulada pelo Condepe. A base do trabalho da comissão foi a análise feita pelo Cremesp de laudos necroscópicos emitidos por 23 institutos médicos legais do Estado — laudos que o governo estadual inicialmente tentou ocultar da opinião pública, levando-os dos IML para o gabinete da Secretaria da Segurança Pública. O relatório da comissão descobriu indícios de execução em 60% a 70% de 124 dos Crimes de Maio registrados pela polícia como “resistência seguida de morte”.

A jornalista Rose Nogueira, que presidia o Condepe em 2006, via semelhança entre as formas de atuação da Polícia Militar de São Paulo da democracia com as forças da ditadura militar, que ela conheceu de perto. Presa como “terrorista”, em 1969, quando ainda amamentava um filho de 33 dias, Rose contava de uma declaração que afirmava ter ouvido durante os dias de cárcere no Presídio Tiradentes. “Os carrascos da ditadura diziam que, para cada agente do Estado que fosse morto, eles matariam outras dez pessoas, na base de dez para um”, dizia.

Após o relatório da comissão articulada pelo Condepe, outros estudos voltaram a apontar as violações de direitos humanos nos Crimes de Maio. Em 2008 o professor Ignácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a pedido da ONG Conectas realizou o estudo “Análise dos impactos do PCC em São Paulo em Maio de 2006”. Em 2011, veio o relatório São Paulo Sob Achaque, da Faculdade de Direito de Harvard com a Justiça Global. E, em 2018, o estudo Violência de Estado no Brasil, da Unifesp, no qual Débora Maria da Silva figura como uma das pesquisadoras.

Em 2019, o caso do irmão desaparecido de Francilene foi levado pela segunda vez a julgamento, por conta da pressão das Mães de Maio e da Defensoria, mas ainda assim o Tribunal de Justiça de SP invalidou a ação, argumentando que o processo deveria ter sido ingressado antes de 2013.

Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Violência Institucional da Conectas, lamenta a morosidade da Justiça. “Nós temos monitorado o andamento da ação no STJ e lamentamos que o TJ-SP não tenha reconhecido todos os elementos apontados pelo Ministério Público na ação, sobretudo que não tenham reconhecido as falhas e as responsabilidade do Estado perante as famílias vitimas e familiares dos Crimes de Maio.”

Há ainda uma investigação em andamento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Santos (SP). Fora isso, a Defensoria Pública ingressou com oito ações de indenização por danos morais e materiais contra o estado de São Paulo, em favor dos familiares das vítimas, das quais três tiveram resultados favoráveis.

As investigações sobre as mais de 500 mortes em 2006 nunca foram concluídas no Brasil. Com as dificuldades encontradas em investigar e responsabilizar o Estado, em 2009 a Conectas pediu à Procuradoria-Geral da República que o caso da chacina do Parque Bristol, um dos mais emblemáticos Crimes de Maio, fosse transferido para a esfera federal, para que as investigações fossem reabertas e realizadas por peritos independentes do Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.

Somente em maio de 2016, dez anos após os assassinatos, Rodrigo Janot, o então procurador-geral da República, acatou a solicitação da Conectas e apresentou ao Superior Tribunal de Justiça o pedido de federalização da chacina do Parque Bristol. O pedido, contudo, está parado no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

O representante da Conectas segue defendendo a medida. “Nós encaminhamos um novo pedido de audiência ao tribunal para que possamos insistir nos nossos argumentos de que haja esse desfecho do deslocamento de competência. Continuamos a insistir nessa medida, que é a mais adequada diante do atual cenário de falta de investigação e de responsabilização do Estado diante desses crimes”, diz Sampaio.

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A federalização da investigação de todos os Crimes de Maio é uma bandeira antiga das Mães de Maio. O movimento já chegou a enviar uma carta em 2012 à ex-presidente Dilma Rousseff, que nunca deu uma resposta. Quando Raquel Dodge assumiu a PGR, sucedendo Rodrigo Janot, em 2017, o movimento imaginou que ela pediria a federalização dos crimes, já que era uma recomendação que fazia parte do relatório São Paulo sob Achaque, do qual Dodge havia sido uma das autoras. Apesar disso, Dodge concluiu o mandato e deixou o cargo de procuradora-geral em 2019 sem ter feito o pedido.

A Ponte fez contato com a ex-procuradora-geral Raquel Dodge, mas as questões não foram respondidas.

Denúncias são levadas às cortes internacionais

Em 2009, a Conectas e os familiares das vítimas denunciaram os Crimes de Maio na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA) alegando violação do Estado brasileiro à Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo país em 1992.

Em 2015, houve uma segunda ação, quando a Defensoria Pública de São Paulo acionou a Comissão solicitando o reconhecimento das violações cometidas pelo Estado brasileiro contra as vítimas identificadas e a reparação integral das suas consequências dos crimes. Essa ação aguarda a admissibilidade. 

Nesta semana, o Movimento Independente Mães de Maio, o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Defensoria Pública de SP e a Conectas Direitos Humanos recorreram à OEA pela terceira vez. Agora pedem que a organização responsabilize o Estado brasileiro pelos desaparecimentos de ao menos quatro pessoas durante os Crimes de Maio. 

Mães de Maio no Primeiro Encontro Internacional de Vítimas do Estado, em 2016 | Foto: Caio Palazzo

O documento cobra ainda que cursos e outras medidas para capacitar juízes e promotores quanto ao tema do desaparecimento forçado sejam requisitadas. A Defensoria e as organizações também reivindicam a oferta de atendimento psicológico aos familiares das vítimas. A petição destaca que, no caso de o governo brasileiro não atender às recomendações da CIDH, as denúncias sejam remetidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Leia também: Mães de Maio, Defensoria e Conectas denunciam desaparecimentos de vítimas dos Crimes de Maio na OEA

À Ponte, Sampaio explicou nesta semana que as denúncias encaminhadas para a OEA devem ser admitidas e depois julgadas. O julgamento não tem poder de decisão nas esferas jurídicas nacionais, mas deve chamar a atenção para a  responsabilidade do Estado. “Os nossos pedidos na OEA visam o reconhecimento da responsabilidade do Estado e juntamente identificar e recomendar ao nosso país que tome medidas para reparação, como a indenização das vítimas e familiares.”

Chacinas continuam

O extermínio motivado por vingança, como nos Crimes de Maio de 2006, virou um padrão da polícia paulista. Em agosto de 2015 a chacina de Osasco e Barueri deixou 23 pessoas mortas. Segundo as investigações, os assassinatos foram praticados para vingar a morte do PM Admilson Pereira de Oliveira, em 8 de agosto de 2015, e do GCM de Barueri Jeferson Luiz Rodrigues da Silva, no dia 13 do mesmo mês. Dois dos quatro agentes de segurança pública acusados de envolvimento no caso foram presos. 

A repetição dos crimes cometidos por policiais acontecem por conta da falta de responsabilização do próprio Estado, que persiste em tratar os casos como ações isoladas e pessoais dos policiais, diz Acácio Augusto, professor do departamento de Relações Internacionais da Unifesp. Segundo ele, parcela da população é tida como inimiga para as corporações policiais. “São classificados numa determinada categoria social, de criminosos, integrantes de facção e automaticamente a sua eliminação está justificada. Vimos isso nos acontecimentos de maio, na chacina de Osasco e Barueri e na chacina promovida no Jacarezinho (RJ). É bem interessante, porque o Jacarezinho já tinha sido alvo de uma intervenção militar em 2012, de ocupação para ‘pacificação’. Até a nomenclatura usada é uma nomenclatura de guerra.”

Outro aspecto levantado pelo professor é de que a polícia é na verdade uma gangue armada. “Com a diferença de que ela é fardada, armada, motorizada e possui licença para matar. O policial que mata é individualmente isolado como se ele tivesse cometido um excesso ou coisa do tipo e não se reconhece o funcionamento sistêmico da polícia, como essa gangue que produz a pacificação pela violência, pela morte, pela execução”.

maes de maio praia do gonzaga
Mães de Maio em homenagem à Vera Lúcia, uma das fundadoras do movimento, em maio de 2018 | Foto: Ailton Martins

Por esses e outros motivos, Débora Silva acredita que os Crimes de Maio mostraram que a ditadura não acabou. “Esqueceram de avisar para a polícia que ela não podia ser militarizada no Estado Democrático de Direito, eles [governantes] não lutaram mesmo assistindo a milhares de vidas ceifadas por ano no Brasil, é uma esquerda elitizada branca que tem um olhar para a periferia como uma parte de pessoas que deveriam continuar nas senzalas e também nos porões de navio negreiro, é a negação dos seus corpos, igual ou pior do que fizeram na ditadura militar”, afirma.

Nessa perspectiva, Débora explica que o Movimento Independente Mães de Maio veio traçar a luta nas ruas e ocupar os espaços institucionalizados mostrando que a polícia é violenta. “Essa polícia não nos serve, com esse padrão de requinte de crueldade. Exigimos o fim dessa polícia, somos contra esse terrorismo fardado. Não há humanização desse modelo, defendemos o fim das polícias. Cheguei a dizer isso a Dilma em uma premiação em 2013, clamei pelo fim das polícias militarizadas para acabar com essa violência”.

Segundo a militante, o Estado deve vir a público e dizer que errou em maio de 2006. “Enquanto isso não acontecer, nós estaremos com as mães dizendo em tom alto que nossas mortes têm voz e que nossos mortos têm mães, brotaram várias a nível nacional e internacional porque nós com certeza fomos a sementes férteis que acordaram a juventude para lutar pelos seus direitos, para que as suas mães ocupem vários espaços para se transformar. A transformação está dentro dos sujeitos, não está dentro dos cargos que eles ocupam.”

O que diz o Estado

A Ponte entrou em contato com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que na época dos Crimes de Maio havia acabado de deixar o governo para concorrer à Presidência. A assessoria de imprensa do PSDB não respondeu ao pedido de entrevista.

O Ministério Público de SP também não respondeu ao pedido para falar com o então secretário de Segurança Pública de São Paulo e atual procurador de justiça, Saulo de Castro de Abreu Filho. 

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A reportagem procurou o ex-governador Cláudio Lembo por meio da assessoria de imprensa da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mas o pedido de entrevista foi negado. Segundo a universidade, Lembo tem problemas de saúde e “só mantém contato com a família”. 

A assessoria de imprensa do Ministério Público de São Paulo não respondeu sobre o papel da instituição nos Crimes de Maio, limitando-se a mencionar apenas sua atuação em um caso pontual, a denúncia de um PM pela morte de três jovens num lava-rápido em maio de 2006.

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