Débora Silva: a mãe de maio que desafia o Estado

Fundadora do Movimento Mães de Maio que luta há quase 17 anos por memória, justiça e reparação foi homenageada pela Câmara de São Paulo; “nós queremos agora tudo: uma democracia de raça, classe e gênero”

Durante entrega de honrarias, Débora Maria da Silva mostra bandeira com foto do filho Edson Rogerio acompanhada com a charge de Latuff e a frase “Em memória de todas as vítimas do Estado genocida” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Débora Maria da Silva, 63, subiu o púlpito com os olhos marejados. Com a voz embargada, mas potente, confidenciou: “Esse mérito todo que eu recebi hoje é mais de 90% da minha mãe”. Com uma pausa longa, prosseguiu. “Ela teve o filho arrancado e não teve direito de enterrar o corpo”. A violência policial foi vista e sentida desde cedo pela fundadora do Movimento Independente Mães de Maio e, naquele 9 de fevereiro de 2023, não poderia deixar de lembrar que sua mãe estava completando 85 anos e que um dos seus 12 irmãos, Dema, desapareceu na época em que operava um Esquadrão da Morte na Baixada Santista, no litoral paulista, grupo formado por agentes de segurança pública no final dos anos 1960 e que executava pessoas sumariamente.

Debora recebeu duas das maiores honrarias da Câmara Municipal de São Paulo: a Salva de Prata, voltada para organizações que prestaram serviços relevantes à cidade, e o Título de Cidadã Paulistana, que é direcionado a pessoas que não nasceram na capital paulista, mas marcaram a história do município pelo trabalho realizado. As homenagens foram entregues pelas mãos do vereador Eduardo Suplicy (PT), a quem a ativista chamou de “uma lenda na política” e trocou afetuosos abraços e beijos. Essa foi a segunda premiação que recebeu de uma casa legislativa. A primeira foi em 2018, na Câmara Municipal de Osasco.

Com Suplicy, em 2020, protocolou um projeto de lei ainda em avaliação pela Comissão de Constituição e Justiça intitulado “Lei Mães de Maio”, que busca garantir auxílio psicológico e social para famílias que tiveram filhos ou parentes mortos pelo Estado, medida pleiteada pelo movimento há quase 17 anos.

Em seu discurso, ela afirmou que outro parlamentar já havia sugerido a entrega das honrarias às Mães, mas elas recusaram. “A gente jamais ia participar de um palco junto com os algozes dos nossos filhos que também iam receber [a homenagem] na mesma época e nós não aceitamos porque mãe de maio incomoda essa instituição [policial]”, declarou, em referência a policiais que receberam a placa prateada da Câmara.

Em São Paulo, também mirou nos dois quadros gigantescos de Clóvis Graciano, pintados em 1969, expostos no Salão Nobre onde ela estava sendo homenageada: Colonizadores da cidade de São Paulo e Partida dos bandeirantes. Enquanto esses personagens faziam expedições para caçar e escravizar indígenas e pessoas negras, Debora cruzou cidades e países que ficaram pequenos diante da sua luta por justiça. “A gente jamais vai completar duas décadas [de movimento] aceitando que os bandeirantes que se tornaram fardas assassinas que matam nossos filhos a cada um minuto nas favelas e periferias sendo homenageados dentro dessa casa com um painel desses”, disparou. “A gente queremos monumento Mães de Maio nesse país e nessa cidade”, vibrou.

O primeiro deles foi inaugurado em 10 de dezembro de 2021, no Dia Internacional dos Direitos Humanos. O memorial em homenagem às famílias das vítimas do Estado brasileiro foi fincado na Praça Domingos Aulicino, zona noroeste da cidade de Santos, no litoral paulista. É uma escultura de 11 pessoas com braços erguidos e seis buquês de rosa nas mãos acompanhados de um letreiro com os seguintes dizeres “Este monumento simboliza o amor das famílias aqui representado pelo Movimento Mães de Maio. Como dizia Sergio Vaz: ‘de todos os hinos entoados em louvor às revoluções nos campos de batalha, nenhum, por mais belo que seja, tem a força das canções de ninar cantada nos colos das mães’”.

A inauguração se deu depois de o prefeito Rogério Santos (PSDB) se comprometer a construir o monumento após vetar projeto de lei que criava mausoléu para as vítimas dos Crimes de Maio de 2006  — o maior episódio de violência policial da história brasileira, quando grupos de extermínio formados por policiais mataram 505 pessoas no estado de São Paulo, numa retaliação contra pessoas negras e periféricas por conta de ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos. “Os Crimes de Maio não é passado. Ele nunca vai ser passado. Ele tá presente dentro das favelas e das periferias porque não houve punição”, declarou Debora.

É a busca por responsabilização e reparação que a ativista persegue há 16 anos a pedido do próprio filho, o gari Edson Rogério Silva dos Santos, assassinado aos 29 anos durante o massacre. Ele tinha passado na casa de Débora para buscar um remédio, já que tinha operado a boca, e decidiu voltar para sua residência de moto. Apesar de ela insistir para que ele ficasse, já que corriam os boatos de ameaças de represália pela polícia por conta dos ataques do PCC, o gari saiu. A gasolina acabou no meio do caminho e Rogério empurrou o veículo até um posto e, lá, foi enquadrado por policiais. Não seria mais visto com vida. Na época, ele deixou um filho de três anos.

“Eu ouvi no rádio, no dia seguinte, que tinha tido uma matança. Começou a dar os nomes, ouvi para saber se conhecia. O terceiro da lista era o meu filho”, contou às lágrimas em 2016, para a primeira edição do livro Mães em Luta, que narra histórias de mulheres que perderam parentes para a violência policial, feito pela Ponte em parceria com as Mães de Maio, e que marcou os 10 anos da matança.

Foram cinco dias internada num hospital sem conseguir sair de cama. Foi ali que Rogério apareceu e a chacoalhou. “Quando me puxou da cama, ele disse: ‘Mãe, luta pelos que estão vivos. Eu não volto mais. Aqui não é o seu lugar, não é para a senhora ficar aí’. Foi quando comecei a ir atrás das outras mães”, lembrou.

Uma delas foi a cabeleireira Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, que perdeu de uma vez Ana Paula, sua caçula de 20 anos, grávida de nove meses da pequena Bianca, que também não resistiu, e o genro Eddie Joey de Oliveira. Em meio às subidas de Santos para São Paulo para denunciar os crimes, em 2008, Vera teve a casa invadida por PMs e acusada falsamente por tráfico de drogas. O Tribunal de Justiça a condenou e ela passou três anos e dois meses na prisão. Dez anos depois, em 2018, Verinha, como era carinhosamente chamada, tombou.

Debora sentiu e sente muito a perda da companheira de luta. “Ela incomodou o Estado e o Estado forjou uma cadeia para ela porque o único partido era a guerra às drogas. Essa é uma guerra contra os pretos e contra os pobres porque quando a gente chega aqui e vê a playboyzada fumando maconha, a polícia passa com o carro guardando eles”, declarou.

Por isso, a ativista cobra uma política pública voltada para as vítimas e familiares de vítimas de violência estatal. No ano passado, por meio de uma carta enviada pelo movimento junto com a Defensoria Pública e com a ONG Conectas Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou a instalação de um Centro Especializado de Atenção às Vítimas no Tribunal de Justiça de São Paulo, o que ainda não aconteceu.

Ao mesmo tempo, também pleiteia que a Defensoria Pública tenha um núcleo especializado voltado para a questão, projeto este que está parado para análise no Conselho Superior do órgão. “Desde 2007, nós pedimos um núcleo de atendimento especializado e humanizado dentro da Defensoria Pública, mas eles deram um convênio para os assassinos dos nossos filhos continuarem matando”, criticou a ativista.

Ela se refere ao convênio assinado em 2021 com o governo do Estado que garante assistência jurídica gratuita a policiais que cometam crimes em serviço. Na mesma semana do anúncio, a Defensoria lançou um programa chamado Rede Apoia, para vítimas de violência letal, muito parecido com o plano voltado para as Mães e que recebeu críticas por não ser específico. A cobrança por assistência às mães também se deu em audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), para discutir os impactos da violência policial sobre a população negra brasileira, no ano passado.

Além disso, a criminalização do movimento fortalece o adoecimento do luto. Até hoje, uma promotora de caluniou a atuação das mães durante o julgamento de um PM em 2015 não foi penalizada. No vídeo, Ana Maria Frigério Molinari, do Ministério Público Estadual de São Paulo, afirma que as mães são financiadas pelo crime organizado, essa gravação já foi usada por advogados de defesa de policiais durante júris populares.

A atuação do MPSP vem sendo incansavelmente cobrada pelas Mães. Em protesto no ano passado, no âmbito dos 16 anos dos Crimes de Maio, a fundadora do movimento colocou uma caixa de papelão escrito “biqueira” e “lojinha” com papéis com nomes das vítimas e frases como “o vídeo do MP é racista”, “nossos mortos têm voz” e “abaixo aos arquivamentos”, sobre as investigações terem sido arquivadas. “É essa a nossa biqueira, promotora”, declarou Debora. “A vida dos nossos filhos não têm negócio! Cadê o procurador-geral para entrar com uma ação? Enquanto não tiver justiça, não haverá paz! Enquanto esse vídeo não for retirado, não vai ter sossego, porque nós vamos cobrar. Se a gente fosse da biqueira, não estaria cobrando por justiça pelos nossos filhos.”

O caso do filho de Debora ainda está sendo investigado pelo MP estadual. Isso porque, no ano passado, o Ministério Público Federal arquivou a investigação de 12 assassinatos em maio de 2006, conhecido como crimes da Baixada Santista, ao alegar que o MPSP reabriu o inquérito.

Por outro lado, uma ação civil pública apontou o estado de São Paulo como o responsável por todas as mortes dos crimes de maio de 2006 foi oficializada em 2019 pela Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público. Na petição, os promotores pediram à Justiça que condenasse o governo paulista a pedir desculpas publicamente por suas violações e a indenizar as famílias das 564 vítimas. Em novembro de 2019 o pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), com a justificativa de que os crimes prescreveram. Um recurso está atualmente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que ainda não foi julgado.

Além disso, em agosto de 2022, o STJ decidiu pela federalização das investigações da chacina do Parque Bristol, em que cinco jovens foram mortos após serem baleados por homens encapuzados, na zona sul de São Paulo, em 14 de maio de 2006 — o massacre faz parte dos Crimes de Maio. A decisão vem seis anos depois que o então procurador-geral da República Rodrigo Janot entrou com um pedido para transferir a apuração do caso para a Polícia Federal, atendendo a uma solicitação feita em 2009, por familiares da vítimas, pela Defensoria Pública e pela ONG Conectas Direitos Humanos.

E não faltam estudos sobre o massacre. Em 2018, Debora passou a figurar também como pesquisadora junto com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Oxford, da Inglaterra. No estudo Violência de Estado no Brasil, é esmiuçado os perfis de 60 vítimas da Baixada Santista no âmbito dos Crimes de Maio.

“A Raiane [Assumpção, reitora da Unifesp] foi a primeira que escutou nós falar e a gente tira o chapéu para ela como reitora, como uma mulher corajosa de dizer que a teoria ou caminha lado a lado com a prática ou não tem mais teoria”, discursou Debora durante a entrega das honrarias. “A gente cansou de ir atrás da turma que fala muito bonito do genocídio e cala a mãe. Ninguém faz nada sem nós”.

“Nós não queremos mais ser escada de ninguém, nós queremos subir junto”, sentenciou.

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Outro degrau que ela subiu foi ser reconhecida como melhor atriz coadjuvante pela participação no filme A Mãe, de Cristiano Burlan, em 2022. A obra ficcional conta a história de Maria, interpretada por Marcélia Cartaxo, que é uma nordestina que trabalha como camelô na cidade de São Paulo. Ela vive em um bairro periférico, e acaba perdendo o filho assassinado pela polícia. Assim como as Mães de Maio, a personagem também inicia uma busca por respostas pela morte do filho.

“Nós queremos agora tudo: uma democracia de raça, de classe, de gênero para poder dizer que a gente vive numa democracia de verdade. Salve as Mães de Maio”, ergueu com o punho cerrado a mãe negra que desafiou o Estado.

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