Samantha sobreviveu a muita coisa: à pobreza, à prostituição, a mais de 30 facadas, ao preconceito e à depressão; como cabeleireira, descobriu a felicidade
Algo dizia que as coisas não seriam fáceis. Talvez o ano de nascimento tenha alguma responsabilidade nisso: 1975 foi bastante conturbado. No mês anterior ao de seu nascimento, a guerra civil começava no Líbano e o Brasil, apesar de viver o chamado “milagre econômico”, sofria com a ditadura militar, que estava em seu auge — no final desse mesmo ano, o jornalista Vladimir Herzog seria brutalmente assassinado nas celas do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, o temível DOI-CODI, na capital paulista.
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Enquanto as manchetes dos jornais estampavam a votação do Congresso brasileiro sobre o divórcio, em 8 de maio de 1975, a história da guerreira Samantha começava a ser escrita em São Luís, capital do Maranhão. Esse ainda não era o seu nome, mas desde muito cedo os anseios femininos já falavam mais alto. Quando criança, como o trabalho pesado que sua mãe e sua irmã faziam na roça não era de seu agrado, ela optava por aguardar a família em casa enquanto preparava as refeições. Sonhava em ser cozinheira.
Conheci Samantha no mesmo mês em que duas travestis foram assassinadas em São Paulo. Sequer houve cobertura da mídia tradicional sobre os crimes, com exceção da Ponte, que publicou os dois casos, ambos ocorridos no dia 13 de outubro de 2016.
A primeira morte relatada foi a de Yasmim Montoy, 20 anos, espancada nas proximidades do Parque do Carmo. Como normalmente ocorre nos registros policiais em casos de óbitos de pessoas LGBT, a versão oficial da morte de Yasmim esconde a verdade dos fatos. Para a polícia, a jovem teve uma “morte suspeita” e, de acordo com o boletim de ocorrência, não havia sinais de violência em seu corpo. Contudo, um amigo da vítima, que não quis se identificar, alegou ter visto o corpo da amiga e notado ferimentos de agressões e pauladas.
Ainda mais violento do que o assassinato de Yasmim, a segunda morte registrada no dia 13 de outubro de 2016 foi de uma travesti que não teve a identificação revelada e foi encontrada morta dentro de uma viatura da Polícia Civil no 77º Distrito Policial da capital paulista, no bairro de Santa Cecília.
Voltando à vida de Samantha: as coisas melhoraram quando ela mudou de São Luís para Fortaleza, no final de sua infância. Começou a trabalhar como jardineira nas “casas de família”, como ela chama o trabalho doméstico.
— Nessas casas, existia uma empregada que ficava do lado de dentro e uma que era responsável pelo lado de fora; essa que ficava fora não podia entrar na casa em hipótese alguma.
Não demorou muito pra que ela deixasse de ser a jardineira e começasse a cuidar da limpeza interna. Na época, a jovem Samantha deu início à tentativa de viver um de seus sonhos: o de trabalhar como cozinheira. O primeiro passo foi matricular-se em um curso profissionalizante. Resultado imediato, começou a trabalhar em um bufê e, com o tempo, se tornou cozinheira chefe.
Em alguns momentos da conversa, Samantha troca o artigo feminino pelo masculino ao contar como era a sua vida antes da transexualidade. É como se houvesse duas pessoas nessa história.
Antes de completar 18 anos, seu namorado propôs que mudassem pra São Paulo. O preconceito na cidade de Fortaleza era muito forte e ela já se definia como travesti, mas sem exposição pública. Não deu outra: Samantha aceitou o convite. O casal chegou ao destino paulistano, mas não demorou muito para que uma grande briga o separasse. Samantha tinha uma tia na nova cidade e, já que havia largado tudo em Fortaleza, decidiu tentar a vida na grande metrópole paulistana.
— Aí começou a minha grande saga.
Tratada como os cachorros
A ilusão de realizar os sonhos e construir uma nova vida em São Paulo é comum entre migrantes nordestinos, assim como a decepção. Aliás, em novembro de 2016, essa mesma cidade estampava, com orgulho, cartazes, painéis e molduras em trens e estações do metrô com a frase “São Paulo. Há 15 anos sem espaço pra a discriminação” e as hashtags #SP-contratransfobia e #SPcontrahomofobia. Apesar de realmente possuir a Lei 10.948, sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que pune qualquer tipo de manifestação discriminatória, o Estado de São Paulo nunca se tornou um “espaço sem discriminação”, como define o governo estadual.
Ao lembrar momentos negativos de sua vida, como aqueles que as leis não alcançam, a voz grave de Samantha dá lugar a um timbre mais emotivo, como quando lembra da recepção da tia na rodoviária, em São Paulo:
— Percebi pelas suas malas que você não veio me visitar e sim morar aqui, qual é a sua intenção?
Mesmo após a explicação de que se trataria de pouco tempo, a hospitalidade não foi das melhores. A tia sentia receio do que os vizinhos poderiam falar, já que em sua cabeça Samantha não existia e, na verdade, era um sobrinho homos-sexual — fato tão grave, pra ela, quanto se tivesse percebido a verdade.
O motivo da falta de percepção dos parentes era simples: Samantha era discreta – prendia os cabelos e não deixava aparecer os seios crescidos por meio de hormônios; aliás, nunca mencionava esse fato com a família paulistana.
Durante o mês em que passou na casa de sua tia, sofreu como nunca. Era tratada como os cachorros: dormia em um sofá na lavanderia e a sua alimentação era escassa, sobrevivia com os restos de comida. A relação com o seu primo também não era das melhores: enquanto ela tomava banho, ele desligava a chave de luz pra que a água esfriasse. Após a quarta semana, a tia não aguentava mais: começou a pressionar a sobrinha pra que ela arrumasse um emprego e deixasse a casa. Mesmo jovem, com apenas 18 anos, Samantha estava acostumada a trabalhar, e essa nova vida em São Paulo era o oposto de tudo que já vivera até então.
Cansada da situação, saiu pra espairecer em uma tarde chuvosa. Ainda longe de seu destino, sentada em um ponto de ônibus, foi abordada por um taxista que notou que ela estava chorando. O homem a convidou pra entrar no carro e ela, com frio por conta da chuva, aceitou. Durante a conversa que tiveram, Samantha contou sua história e ouviu como resposta que era muito bonita pra passar por isso. Neste momento, ele tentou convencê-la de que combinaria com a prostituição, e se propôs a ajudá-la. Após responder positivamente, o taxista a levou pra comprar roupas e sapatos. Depois das compras, eles foram até o ponto de prostituição de travestis e o taxista ensinou como tudo funcionava.
Na época, explica Samantha, havia duas quadrilhas de prostituição na cidade: a de Elizete e a de Paulo Richa. Esses cafetões, que dominavam as ruas da capital paulista, eram responsáveis pelo tráfico sexual de travestis pra a Europa nos anos 90. Pra não arranjar confusão com as demais, o taxista ensinou a Samantha como funcionavam as coisas na rua.
— Se eu fosse abordada por uma delas, deveria perguntar com quem elas moravam; era uma senha usada pra dizer o nome do cafetão; caso elas morassem com Elizete, eu deveria falar que morava com Paulo Richa.
Dessa forma, ela poderia permanecer naquele ponto, já que as duas quadrilhas não podiam mexer uma com a outra. Sem esta informação preciosa, Samantha poderia ter sido espancada caso falasse que não trabalhava pra ninguém:
— Bicha avulsa é considerada bandida, elas batem sem dó.
Em apenas duas horas, Samantha ganhou cinco vezes mais do que recebia por semana em Fortaleza. Para ela, esse seria o caminho ideal. Assim que acabou a primeira noite, avisou a tia que iria deixar sua casa e, no dia seguinte, alugou um quarto pra morar. Durante muito tempo, essa era a forma de se sustentar. Até que conheceu um rapaz que a conquistou. Decidiu, então, conversar com ele sobre a prostituição. A reação do namorado não podia ser pior: ele deixou claro que não aceitava essa situação e foi embora.
Depois, a felicidade
Apesar de não salvar a relação, a verdade libertou Samantha da vida nas ruas: decidiu procurar um trabalho formal. A sua futura profissão começava a cruzar com sua história em meados de 2005, enquanto ela fazia um curso profissionalizante no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercia) para ser cabeleireira. Algum tempo depois, conseguiu seu primeiro emprego na profissão. Ganhava R$ 800 a cada quinzena. Por oito meses essa foi sua rotina, até que um dia resolveu arriscar.
O universo dos salões de beleza foi o seu caminho, assim como a porta de entrada de outras duas personagens deste especial: Luiza e Renata. Além dessa semelhança, as três são migrantes da região Nordeste do país e estão na mesma faixa etária, todas com mais de 40 anos. Os dados da migração Nordeste-Sudeste divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2010 indicam que durante os anos de 1990 e 1995 o fluxo migratório aumentou gradativamente: 5,5 milhões de habitantes, equivalente a 28% da população rural, deixaram o Nordeste em busca de trabalho e renda. Para as travestis, a migração tem um fator adicional: a segurança. Apesar de São Paulo ser uma cidade que mata muitas travestis e mulheres trans, ser travesti ou transexual no Nordeste, sobretudo na década de 90, era uma realidade difícil. Muitas meninas só iniciaram a transição quando chegaram à capital paulista, por medo da violência física e verbal em suas terras natais; isso aconteceu com as três perfiladas migrantes deste especial: Luiza, Renata e Samantha.
No começo da carreira de cabelereira, Samantha não teve o apoio de ninguém. Pelo contrário, todos ao seu redor diziam que não resultaria em nada, pois montar um salão era algo muito complicado. Sem deixar se abater, ela insistiu na ideia e procurou uma casa pra alugar e abrir seu negócio. Como praxe em sua vida, a dificuldade continuou. Concretizar o aluguel foi um desafio, pois os proprietários insistiam em não permitir. Pediam depósito de três meses com fiador e queriam que ela arcasse com os custos da reforma da casa, que estava em condições bem precárias. Apesar dos empecilhos, Samantha finalmente conseguiu fechar o contrato de aluguel daquilo que viria a se tornar o “Espaço de Beleza Samantha Hair”.
O salão de Samantha fica no Campo Limpo, na zona sul, bairro localizado a 20 quilômetros do Marco Zero da cidade, na Praça da Sé. O Campo Limpo faz divisa com os bairros Vila Sônia, Vila Andrade, Jardim São Luís e Capão Redondo, além de ser vizinho do município de Taboão da Serra.
Para chegar ao Campo Limpo de transporte público, há duas opções: ônibus ou metrô. Também há no bairro importantes vias como a Estrada de Itapecerica e a Estrada de Campo Limpo. Em uma rápida busca pelo Telelista, é possível encontrar ao menos 20 salões de beleza na região, além do Samantha Hair.
Passados alguns anos da inauguração, Samantha tinha condições de comprar a casa, então precisou lutar mais uma vez. Os proprietários dificultaram de todas as formas possíveis pra não permitir que Samantha tivesse essa conquista em sua vida. Inicialmente, eles alegavam que ela não tinha renda pra efetuar a compra. Depois, tentaram colocá-la pra fora da casa e aumentaram o preço inicial ofertado. A única alternativa foi entrar na justiça. Após meses de negociação e audiências, conseguiu realizar a compra.
— Mais uma vitória minha, depois de muita luta consegui, mas sabe de uma coisa? Valeu a pena.
Durante cinco anos, a cabelereira conheceu a felicidade. Aos poucos, de espelho em espelho, de cadeira em cadeira, construiu seu salão e começou a conquistar clientela fiel. Boa parte das pessoas que frequentam o salão estão com Samantha desde sua abertura. No melhor momento, o negócio contou com duas cabelereiras, duas manicures e uma recepcionista – isso não é mais realidade por conta da recessão econômica do país; quando fiz a entrevista, no primeiro semestre de 2017, o salão contava com apenas com um funcionário, seu assistente Anderson.
‘É preconceito, é maldade’
Essa não é a primeira dificuldade com o salão. Há quase uma década atrás, um momento ruim bateu às suas portas. Na verdade, invadiu. Era 2008. Como o salão estava crescendo cada dia mais, começou a chamar atenção e Samantha foi vítima de um assalto. O resultado trágico: ela tomou 30 facadas, em diversos locais, que deixaram cicatrizes em seu pescoço, ombros e braços. Não seria absurdo qualificar o assalto como crime de ódio. Houve consequências mais graves do que as físicas: ela foi diagnosticada com síndrome do pânico e depressão.
— Foi muito difícil continuar aqui no Campo Limpo depois disso. Fiquei quatro meses sem trabalhar, muito machucada e com muito medo.
A pior parte da recuperação de Samantha estava no fato de ela morar na parte superior do salão. Para superar o trauma, além da terapia ocupacional, Samantha instalou 10 câmeras, espalhadas e escondidas pelo ambiente, e reforçou a segurança da porta, agora automática. Só entra no Espaço de Beleza Samantha Hair quem é autorizado por meio do interfone.
No decorrer destes anos, a simpática cabeleireira conquistou não só clientes, mas amigas fiéis. Durante a entrevista, ao menos dez clientes apareceram não para fazer o cabelo, mas pra cumprimentar e dar um abraço em Samantha. Sua história de vida é o conselho que oferece às amigas travestis que desabafam com ela e demonstram o desejo de entrar para a vida da prostituição.
Samantha chegou a financiar um curso de manicure pra uma amiga e lhe ofereceu um emprego em seu salão, pois não podia permitir que ela vivesse o drama da vida nas ruas. Para Samantha, a prostituição não tem futuro, nessa vida não há dignidade, amor próprio e autoestima.
— Ninguém nos dá oportunidade, nós que temos que correr atrás, procurar cursos pra não ficar à mercê dessa vida.
Foi impossível conversar com Samantha sem falar de transfobia. Aliás, deixar esse tema de fora seria injusto com ela e com toda a comunidade trans que ainda luta tanto pra se livrar do preconceito.
Recentemente, ela foi vítima de um episódio transfóbico. Com a terapia ocupacional, fruto do assalto, começou a criar animais de diferentes tipos (galinhas, patos, carneiros e vacas) em um terreno alugado. O objetivo era ocupar a cabeça e se livrar do trauma. Desde então, recolhe os descartes de um sacolão próximo pra alimentar os bichos. Depois de anos, a gerência do sacolão foi trocada e a nova gerente a proibiu. No início, a responsável havia solicitado que Samantha levasse um ofício da Vigilância Sanitária; ela procurou pelo documento, mas, mesmo com a apresentação do papel, foi proibida de entrar no ambiente.
Enquanto me contava o episódio, duas clientes mostravam-se indignadas com o que escutavam:
— Como assim?
— Mas por que isso?
— Isso é preconceito, é maldade!
— Essas coisas revoltam.
— Meu Deus, que absurdo!
— Poxa vida, pra eles isso é lixo, mas essas coisas te ajudam muito com os seus animais.
— Eu vou correr atrás, meninas. Já falei com a minha advogada e vamos processá-los. Eu não quero dinheiro, só quero continuar pegando as coisas pros meus bichos. Tem sete anos que faço isso e todo mundo sempre me respeitou, só essa gerente que não.
Para Samantha, a motivação do episódio é a religião da gerente: ela é evangélica. Como é de conhecimento público, a comunidade LGBT é extremamente perseguida por religiosos extremistas. A indignação dela é a mesma de todas as vítimas de LGBTfobia:
— Os evangélicos leem a bíblia, mas parece que não aprendem nada. São as pessoas mais intolerantes e preconceituosas.
Catorze anos se passaram desde a inauguração do salão e ele só cresceu, sem jamais mudar de endereço. Samantha criou laços fortes. Construiu sua zona de conforto, com pessoas que a admiram e gostam dela, tanto do lado profissional quanto pessoal.
Hoje, ela é uma mulher feliz e bem resolvida. Com um sorriso no rosto, conta que agora pode andar de cabeça erguida, sem medo ou complexo de entrar nos lugares. Apesar de termos a mesma altura, me senti pequena diante da imensidão do tamanho real de Samantha.
— Paulo morreu, quero que me chamem de Samantha.
(*) Perfil originalmente produzidos para o livro TRANSRESISTÊNCIA, de Paloma Vasconcelos, escrito em 2017 como trabalho de conclusão do curso de jornalismo do Fiam-Faam Centro Universitário