Após constantes violências dentro das casas legislativas e ameaças de morte, deputadas do PSOL criam projeto de lei contra violência; “Ter uma representação diversa faz com que a gente tenha uma democracia efetiva”, define Dani Monteiro
A brutal execução da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, em 14 de março de 2018, gerou um efeito certamente imprevisto pelos seus assassinos. Desde então, mulheres negras, cis e trans, passaram a ocupar mais vagas nas casas legislativas espalhadas pelo país. E quanto mais essas mulheres negras ocupam esses espaços de poder, mais a violência política contra elas aumenta.
Diariamente deputadas negras, estaduais e federais, são silenciadas, barradas de usar elevadores, questionadas se são parlamentares, impedidas de usar o estacionamento para parlamentares, se deparam com discursos transfóbicos sobre o uso do banheiro e são até ameaçadas de morte.
Unidas não só pelo partido em comum, o PSOL, mas também por essa violência política, seis parlamentares construíram um Projeto de Lei para impedir que isso continue: as deputadas estaduais Andréia de Jesus (PSOL-MG), Erica Malunguinho (PSOL-SP), Mônica Francisco (PSOL-RJ), Renata Souza (PSOL-RJ) e Dani Monteiro (PSOL-RJ), e Talíria Petrone, deputada federal (PSOL-RJ). A primeira versão do projetoi foi apresentada à Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj), e outras versões do texto devem chegar às assembleias de São Paulo e Minas Gerais e à Câmara dos Deputados em Brasília.
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A versão fluminense do projeto visa ampliar a inclusão prevista no Estatuto da Mulher Parlamentar (lei estadual 8.621/2019), atentando a questões de sexualidade, raça e religiosidade e incluindo pontos sobre gravidez, puepério e maternidade na lei.
“Vimos a possibilidade de mandatos, em diversas casas legislativas do Brasil, agirem conjuntamente e propor diversas políticas públicas”, explica Dani Monteiro à Ponte. “Em 2018, tivemos a eleição de três deputadas negras com ligação direta com Marielle, eu, Renata e Mônica, e sentimos um impacto dessa violência política logo de cara”.
“Seja porque a gente veio de fato para mudar a cara do parlamento, não para se adaptar a ele, seja porque do lado da extrema direita houve aqueles que foram eleitos a partir da violência política da Marielle. O mais votado da Alerj foi o cara que quebrou a placa da Marielle“, completa.
Para Dani, para além da eleição de mulheres negras, é preciso cuidar para elas permaneçam nas casas legislativas, e, assim, “efetivar a democracia”. “A existência desses corpos nesse espaço de poder representa a nossa população, mas os espaços de poder em si não compreendem, é um contexto que nunca teve”
“Na Alerj a gente só conseguiu incluir o absorvente na cesta básica agora. Há quantos anos não temos esse debate da cesta básica e a necessidade de colocar ali, pensando nas mulheres cis e nos homens trans? A necessidade desse item ser incluído é fundamental”, cita a deputada estadual.
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O novo projeto, garante Dani Monteiro, não é sobre privilégios, e sim sobre uma “política pública de equidade”. “Os nossos corpos lá efetivam a democracia, realmente a gente pode chegar a um patamar de uma democracia representativa quando esses corpos estiverem lá e eles lá dão um olhar para a política pública a partir da sua vivência e da sua trajetória, que é fundamental”.
Ainda na posse como deputada estadual, Dani, que era assessora de Marielle Franco, teve o seu carro pichado com ameaças. Talíria Petrone, deputada federal, tem sofrido constantes ameaças de morte, que têm se intensificado ao longo dos últimos dois anos. Erica Malunguinho foi atacada pelo deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP) durante sessão plenária na Assembleia Legislativa de São Paulo, quando o parlamentar disse que “se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
“O problema é que o espaço do poder público é composto majoritariamente de homens, brancos, cis e de meia idade. Eles falam que nós fazemos políticas setorizadas, quando eles sempre fizeram a vida toda. Todas as políticas que a gente vê privilegiam esse perfil. Então não vem dizer que não tem política pública direcionada para esses setores por que existem. Ter uma representação diversa faz com que a gente tenha uma democracia efetiva e um olhar mais completo e totalizante para a política pública”, explica Dani Monteiro.
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Dani também cita outro momento violento que vivenciou com parlamentar: “No início da legislatura os parlamentares falaram da minha roupa, abriram um procedimento no Conselho de Ética sobre a minha roupa, dizendo que era uma quebra de regimento, quando nem há um regimento para mulheres. Nitidamente era uma leitura de que aquele corpo negro, se vestindo como um corpo negro e não se adequando a um embranquecimento do espaço, era o que incomodava”.
A vontade nesses momentos, desabafa, é ir embora, desistir, mas ela e as outras cinco parlamentares sabem que estão ali não apenas por elas, mas por muitos outros e outras. “Se a gente não representar esse sonho ali, não vai ter quem represente muitas vezes. Se a gente não enfrentar a dificuldade que é colocada pelo contexto conservador e endurecido da política, se esses corpos não ocuparem esses espaços, não empurrar na marra, não terá como”.
“É muito doloroso, mas precisamos ter esse entendimento que não será fácil, nem para quem tá sendo eleita agora e vai continuar sendo dessa forma. Estamos fazendo essa ocupação para que outros possam ocupar e vamos ter que enfrentar essa violência política de frente”, completa.
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Para Dani Monteiro, historicamente parlamentares homens, brancos e cishétero criaram leis para eles. “Existe política para preservar a vida de todo mundo. Uma das principais causa de morte entre os homens brancos e cis é o acidente de carro misturado com álcool e foi criada a Lei Seca, que é uma grande política pública”.
“O homem branco cis é um setor da sociedade, ele não é o todo. Precisamos racializar os brancos, precisamos debater a heteronormatividade com os héteros e precisamos debater gênero com os homens cis, gênero não é apenas das mulheres e de LGBTs”, pontua.
Para o futuro, a deputada tem dois desejos. “A médio prazo estamos tentando construir esse debate totalizante, mas mirando em um desafio maior e interno: a disputa está dentro dos seus próprios partidos, dentro dos próprios movimentos sociais. Embora se fale muito, nenhum homem branco quer ceder espaço para uma mulher preta e uma mulher trans entrar”.
“A longo prazo vamos sentir a necessidade de crescer. Quando formos majoritários dentro do campo progressista, a luta não vai acabar, vamos ter que ser majoritários socialmente. Essa é a visão a longo prazo. Por mais que hoje a tarefa seja derrotar a extrema-direita, para dentro a nossa tarefa é vencer esses debates dentro dos partidos e dos movimentos sociais”, finaliza.
Violências sistemáticas contra parlamentares negras
Para a pesquisadora Michelle Ferreti, mestre em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ e diretora do Instituto Alziras, responsável pela plataforma “Mulheres nas Eleições“, as mulheres, principalmente negras e trans, enfrentam “múltiplas formas de violência” durante a sua atuação política.
“Vários fatores explicam a baixa presença de mulheres, de uma maneira geral, e particularmente de mulheres negras na política institucional. Um deles é a violência política contra as mulheres, a gente vê que as mulheres sofrem um tipo de violência específica quando estão nos espaços de poder”, explica.
“As mulheres negras, além de sofrerem uma violência ligada aos estereótipos de gênero, que circulam nossa sociedade, também lidam com violências específicas vinculadas ao racismo estrutural, que está nos mais diferentes espaços do nosso mundo, inclusive na política”.
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Ferreti pontua que o aumento de mulheres negras nas casas legislativas é “fruto do trabalho e das lutas históricas feitas pelo movimento de mulheres e pelos movimentos negros”. Mas adverte: “Não adianta falar de mais mulheres no poder se a gente não encontrar mecanismos e estratégias para garantir mais segurança para que essas mulheres possam continuar nesses espaços”.
Apesar dos avanços importantes das últimas duas eleições, pontua Michelle Ferreti, foram “avanços tímidos, insuficientes”. “O aumento na proporção de vereadoras mulheres, e sobretudo de mulheres negras, ainda é muito tímido, mas maior do que no último pleito. Nas prefeituras, o aumento de mulheres também é muito tímido, saímos de 11,7% para 12,2% no primeiro turno”.
Antes das eleições de 2020, cita a pesquisadora, haviam capitais brasileiras sem nenhuma mulher negra eleita para sua Câmara de Vereadores, mas isso mudou: “não só elegeram mulheres negras como as mulheres negras, em muitos casos, foram as mais votadas da capital”.
“Em 2016, tínhamos 32 mulheres negras eleitas em todo o país, para câmaras de vereadores, e em nove capitais você não tinha nenhuma vereadora negra compondo o quadro parlamentar. Nessas eleições, dessas nove capitais que não tinham nenhuma mulher negra, cinco agora têm mulheres negras eleitas e essas mulheres foram bem votadas nessas cidades. Isso é uma coisa importante”.
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“O que a gente viu também foi um aumento importante e significativo de candidatas trans que se elegeram, vimos 30 candidaturas trans eleitas, segundo dados da Antra. Das 30 candidaturas trans eleitas no primeiro turno, 7 foram as mais votadas de suas cidades. Elas vêm com uma legitimidade pública, do voto popular, muito grande”.
Para proteger as parlamentares negras que chegaram ao poder nas últimas duas eleições, explica Ferreti, é preciso fazer mudanças urgentes. “Alguns países da América Latina têm tipificação desse tipo de violência na legislação. Você tem legislações específicas que tipificam a violência política de gênero, e que aqui no Brasil tínhamos também que discutir a violência política de gênero e raça, porque as mulheres negras são vítimas de um tipo de violência que também é atravessada pelo racismo, não só pelo machismo e pela misoginia”.
“É preciso que as instituições funcionem melhor, para dar conta disso, seja o parlamento pensando legislações nesse tema, seja a Justiça eleitoral fiscalizando e punindo as candidaturas e os mandatos que adotam o discurso de ódio como uma plataforma política”, continua.
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A pesquisadora também acredita que é preciso investir na investigação policial para não deixar os casos impunes. “No caso de Marielle, a gente vê que até agora segue sem resposta, que a polícia possa também dar respostas”, lembra. “É importante também que haja punição e responsabilização de quem também emite esse tipo de discurso de ódio e de violência contra mulheres e contra mulheres negras, porque isso não pode ser tolerado e aceito em uma sociedade que se reivindica democrática de verdade”.
“Os estudos que vemos sobre violência política no Brasil hoje não têm um levantamento rigoroso e consolidado desses números, não há uma base de dados governamental pública e integrada para contabilizar esses casos, que também acontecem com homens, mas com registros diferentes. Muitos desses casos não são sequer investigados, não têm inquéritos que sigam adiante”.
Por isso, conclui, é importante a criação de projetos de leis e políticas públicas. “É fundamental que a gente possa contar com esses corpos femininos negros nesses espaços, trazendo suas vivências e suas experiências e traduzindo isso em iniciativas legislativas, em políticas públicas”.
“A proposição desse PL, feito por esse grupo de mulheres, é a explicitação mais óbvia da necessidade de a gente ter essas mulheres nos espaços de poder, porque elas trazem consigo pautas, demandas e prioridades, e colocam na agenda do dia temas que são fundamentais para muitas políticas públicas, que envolvem os interesses das mulheres negras de forma geral. É uma questão da representatividade”.
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