Leia o prefácio escrito pelo diretor de redação da Ponte para o livro “A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?”, de Almir Felitte, lançado pela Autonomia Literária
Eu tinha grandes esperanças quando, em 2014, me juntei a um grupo de companheiros de ofício e de luta para criar a Ponte Jornalismo, um meio de comunicação que procura ampliar o debate sobre os direitos humanos e que carrega como principal bandeira a denúncia de violações cometidas pelas polícias. Não posso falar pelos demais fundadores da iniciativa, mas sei que eu ambicionava nada menos do que tocar corações e mentes país afora com essas denúncias e levar o papel das forças de segurança ao centro do debate público nacional, para daí, em um futuro próximo, conseguir mudar para melhor o sistema de justiça criminal brasileiro.
De lá para cá, a Ponte fez muito — ajudamos a libertar uma centena de pessoas negras presas injustamente e a mandar alguns policiais matadores para a prisão, além de incentivar os demais veículos de comunicação a trazer parte desses temas para sua cobertura regular —, mas o que não conseguimos foi fazer avançar o debate sobre a necessidade de reformar as forças de segurança, principalmente após a chegada ao poder da extrema-direita em 2018. Reforma das polícias virou um daqueles temas que os governantes preferem evitar a todo custo para não perderem votos, um dos tantos “não falamos do Bruno” da política nacional, ao lado da descriminalização das drogas e da legalização do aborto. O terceiro governo Lula, por exemplo, já deu todos os sinais de que vai repetir exatamente o que fez nas suas duas edições anteriores com relação à reforma das polícias, quer dizer: nada.
Acho que só fui ter a real dimensão do tamanho do desafio que é combater as estruturas autoritárias das polícias brasileiras com a leitura deste livro. Em seu mergulho histórico, Almir Valente Felitte revela uma surpreendente resiliência das corporações policiais, ao mostrar como mantiveram as mesmas características de “mecanismo de controle social em favor de um Estado marcado pela desigualdade” ao longo de toda a trajetória do Brasil independente, sobrevivendo incólumes, por dois séculos, a toda sorte de mudanças de regime e formas de governo. Quem diz que o Brasil não tem instituições sólidas e políticas duradouras deveria olhar melhor para as nossas polícias.
Felitte demonstra que, desde seus primórdios até hoje em dia, a polícia brasileira foi marcada por três traços persistentes: o militarismo, que torna a estrutura das Polícias Militares “extremamente porosa a práticas sistematicamente abusivas e violentas”; a inquisitorialidade, traço central dos inquéritos conduzidos pelas Polícias Civis, em sigilo e sem direito ao contraditório, que muitas vezes se tornam o único parâmetro usado pelo Judiciário em suas condenações; e as normas penais genéricas, abertas ou de perigo abstrato, incluindo a criminalização da vadiagem, aplicada ao longo da maior parte do século 20, as “legislações de crimes políticos e sociais, fortemente pautadas por doutrinas de segurança nacional”, usadas nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares, e a guerra às drogas, a partir dos anos 1970 — todas normas que garantiram aos “guardas da esquina” o poder de decidirem pela prisão de suspeitos segundo critérios subjetivos, baseados em estereótipos racistas e políticos.
Indo além das análises mais corriqueiras que costumam diagnosticar as causas do autoritarismo das polícias recuando apenas até a ditadura civil-militar de 1964-1985, Felitte vai recuar até os tempos do Império para encontrar, ali, as origens de um sistema de segurança pública com fortes características de controle social, todo trabalhado em um imaginário de “combate a um inimigo interno” que colocasse em risco a ordem vigente.
Quando as forças policiais foram criadas, nos primeiros anos do Brasil independente, esse inimigo interno tinha o rosto das camadas negras escravizadas e dos movimentos abolicionistas, além dos grupos rebeldes descontentes com o governo. Pessoas negras eram suspeitas por definição: ao serem detidas, precisavam provar que eram livres e não escravizadas, “uma espécie de inversão do ônus da prova para os negros neste período”.
A mesma lógica se manteria após a abolição e a proclamação da República, com a diferença de que as definições de inimigo interno das polícias seriam atualizadas, passando a mirar nas “classes perigosas” dos trabalhadores assalariados, imigrantes e, como sempre, dos pobres e negros em geral, com o apoio de uma legislação que criminalizava a capoeira, o direito de greve e a vadiagem, além de permitir a retirada compulsória e definitiva de “estrangeiros indesejáveis”.
Ao longo das páginas, vemos as polícias brasileiras participarem de atos espetaculosos de violência, destruindo quilombos, esmagando revoltas populares como as de Canudos, do Contestado e da Chibata e perseguindo movimentos grevistas, além de exercer no cotidiano da população uma violência mais miúda, sorrateira e amplamente disseminada, na forma de “práticas a-legais de controle de comportamento dos indivíduos nas vias públicas”, em que a polícia “centrava-se nos considerados vadios, em especial as pessoas negras, procurando impor uma norma de comportamento geral aos mais pobres, tudo feito sem maiores controles do sistema judicial”.
Algo muito parecido com o que acontece na prática policial das abordagens, também chamadas de buscas pessoais, revistas, enquadros ou baculejos, que são simplesmente a atividade policial mais comum executada pelas Polícias Militares atuais. Só a PM do estado de São Paulo revistou 225,3 milhões de pessoas entre 2005 e 2022, o equivalente a toda a população brasileira. Diversos estudos evidenciam o caráter racista dos enquadros: nos estados de São Paulo e no Rio de Janeiro, negros têm quase cinco vezes mais chances de serem abordados pela polícia do que os brancos; na cidade de São Paulo, jovens negros são duas ou até seis vezes mais enquadrados do que brancos da mesma idade, a depender do bairro; e, na cidade do Rio de Janeiro, pretos e pardos, embora representem 48% da população carioca, respondem por 63% dos alvos dos baculejos. Mesmo sendo uma ação de controle social e racial sem qualquer relevância no combate à criminalidade, já que o número de prisões em flagrante corresponde a menos de 1% do total das abordagens, e também sem amparo legal, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça proferiu uma série de decisões afirmando a ilegalidade das buscas pessoais baseadas apenas na aparência ou em “atitudes suspeitas”, a prática dos enquadros foi reafirmada como política de Estado na 82ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública, em junho de 2022. O encontro, que reuniu representantes de todos os estados brasileiros, inclusive aqueles governados por partidos de centro-esquerda (PT, PSB e PDT), deixou claro que, para governantes de todas as tendências ideológicas que comandavam os estados, o combate ao racismo não valia o perrengue de confrontar as estruturas autoritárias de suas polícias.
À prova de mudanças para melhor
A História da Polícia no Brasil mostra o quanto a história brasileira rimou ao cometer os mesmos erros em suas duas transições democráticas, uma após a ditadura do Estado Novo, em 1945, e a outra com o fim da ditadura civil-militar, em 1985. Nos dois momentos, o país realizou transições incompletas, em que tentou instalar regimes democráticos sem tocar na arquitetura policial construída ao longo do período ditatorial anterior, mantendo “os aparatos policiais típicos de uma visão de controle social e político”, que, apesar dos pesos e contrapesos de um Estado democrático de direito, continuaram a impor um estado de exceção permanente à boa parte da população brasileira.
Tem algo de trágico nessa história, pela maneira como o caráter autoritário das polícias acabou se impondo sobre todas as tentativas de implantar políticas garantidoras de direitos. É aí que o livro analisa as políticas tímidas e erráticas dos governos federais nessa área, por meio de iniciativas como os Gabinetes de Gestão Integrada, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania e o Sistema Único de Segurança Pública, que nunca conseguiram avançar na direção dos “princípios humanistas almejados” porque “encontraram na própria arquitetura policial construída na Ditadura, até hoje intocada, um obstáculo para sua realização”.
Assim, as tentativas de combater o legado autoritário das polícias acabaram resultando todas em fracasso. E é bom lembrar que houve, sim, algumas tentativas reais, ao menos nas duas primeiras décadas após a redemocratização. Aplaudida pelos defensores de direitos humanos, a lei federal 9.299, de 1996, conhecida como Lei Hélio Bicudo, transferiu para a justiça comum os crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais, numa tentativa de combater a impunidade dos policiais que matam. Mas logo os “cidadãos comuns” dos tribunais dos júris se mostraram tão lenientes com a violência policial quanto eram os juízes dos tribunais militares. Nos anos seguintes, a letalidade policial cresceu como nunca.
O mesmo se deu com as iniciativas regionais, dos poucos governadores que tentaram interferir no caráter autoritário de suas polícias, mas viram suas iniciativas serem destruídas por seus sucessores. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as gestões de Franco Montoro e Mário Covas em São Paulo, sucedidas por governadores que preferiram interromper qualquer política de controle democrático da segurança pública e estimularam a letalidade policial, que chegou ao auge durante os governos tucanos de Geraldo Alckmin e João Doria.
Sobre isso, José Afonso da Silva, secretário de Segurança Pública no governo Covas entre 1995 e 1999, reconheceu o próprio fracasso ao comparar sua gestão com a de Saulo de Abreu Castro Filho, um de seus sucessores na gestão Alckmin, entre 2002 e 2006. “A nossa era uma política de segurança democrática, o que significava, em primeiro lugar, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. A política do Saulo tomou outro rumo, especialmente no que tange à ação da Polícia Militar”, me disse numa entrevista. Uma afirmação que encontra eco no desabafo de Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante geral da Polícia Militar no governo fluminense de Leonel Brizola e, não por acaso, um dos poucos negros a assumir essa função no Brasil. “É certo que falhamos. Não conseguimos implantar o modelo democrático que defendíamos. Não soubemos prender traficantes nas favelas sem invadir barracos, sem colocar em risco a vida de terceiros; não soubemos fazer a polícia investigar para prender; não soubemos fazer a polícia entender que a sua principal tarefa era prender e não matar”, afirmou no livro O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia (Freitas Bastos Editora, 2001).
Recentemente, a adoção de câmeras corporais pela polícia de São Paulo resultou na queda tanto da letalidade como da vitimização policial, um bom exemplo que passou a ser seguido em outros estados, mas alguns analistas apontam que, se não vierem acompanhadas de reformas profundas na estrutura policial (veja O fim do policiamento, de Alex Vitale, Autonomia Literária, págs. 54-56), os efeitos positivos de medidas isoladas, como essa, tendem a se dissipar com o tempo.
Aliás, a prática tem demonstrado que é mais fácil o legado autoritário das polícias corromper outras instituições, mesmo aquelas sem tradição militarista ou de controle social, do que se deixar influenciar por avanços democráticos. Felitte analisa o caso das Guardas Civis Municipais, as quais, mesmo tendo sido criadas após o fim da ditadura civil-militar, sem vínculos diretos com as Forças Armadas e disciplinadas por um Estatuto Geral de caráter preventivo e comunitário, passaram a incorporar, na prática, as estruturas e a ideologia das suas irmãs mais velhas, as Polícias Militares. A influência foi tanta que as GCMs passaram a ser usadas em ações típicas das PMs, como a repressão contra trabalhadores organizados e pessoas em situação de rua, sem falar dos guardas que se organizam em grupos de extermínio com simbologia de “caveiras”.
Há pouco tempo vimos algo parecido acontecer com a Polícia Rodoviária Federal. Bastaram poucos anos do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro para transformar uma corporação, que até então não tinha qualquer histórico de vocação militarista ou de uso para controle político e social, em uma milícia com vocação para tropa de extermínio e polícia política, capaz de participar das piores chacinas da história do Rio de Janeiro, executar um homem negro com transtornos mentais à luz do dia numa câmara de gás improvisada e, nas eleições de 2022, segundo denúncias, realizar operações nas estradas com o único objetivo de supostamente atrapalhar o voto dos eleitores no candidato da oposição.
Que democracia é essa?
Quem busca olhar a realidade do país a partir do ponto de vista da maioria da população nacional, pobre e negra, que sofre diretamente a ação das polícias, não tem como não começar a questionar a natureza da democracia à brasileira. Que democracia é essa onde milhões de pessoas todos os anos são submetidas a revistas humilhantes por agentes armados do Estado, apenas por causa da cor de suas peles? É possível chamar de democracia um regime onde o Estado é capaz de eliminar em questão de minutos 111 de seus cidadãos, como fez em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção do Carandiru, sem que nenhuma autoridade seja responsabilizada? E que democracia é essa que comporta uma monstruosidade como os Crimes de Maio de 2006, em que grupos de extermínio formados por policiais mataram 505 pessoas em duas semanas — entre elas uma mulher grávida de 9 meses, que ouviu “filho de bandido, bandido é” da boca do policial que a atirou em sua barriga —, mais do que o número oficial de mortos e desaparecidos políticos produzidos pela ditadura civil-militar ao longo de 21 anos, e tudo isso sob aplausos dos promotores do Ministério Público Estadual de São Paulo que deveriam investigar esses crimes? Será que a violência autoritária das polícias que vemos no Brasil é um desvio em relação às corporações dos demais países ocidentais ou será que, por aqui, a natureza do policiamento apenas se mostra como realmente é? E o que esse estado de coisas nos diz sobre a realidade do sistema democrático no Brasil, e das democracias liberais de modo geral?
Felitte vai fazer essas perguntas no último capítulo do livro, mas antes de chegar aí aponta em direções diferentes. Ele identifica a permanência de uma arquitetura autoritária nas polícias brasileiras como um apego ao passado, que se oporia a uma visão “moderna” do policiamento presente nos EUA e na Inglaterra, que teriam desenvolvido um sistema de “controle comunitário” ou “prevenção comunitário”, no qual, “inserido em comunidades locais e próximo aos cidadãos, o policial moderno também cumpre tarefas de caráter preventivo e social”.
Um contraponto a essa visão pode ser encontrado em O fim do policiamento (págs. 44-46). Alex Vitale defende que as polícias dos EUA, mesmo as mais “modernas”, nunca deixaram de ser uma ferramenta de controle social e racial e que, por isso, a aplicação de um “policiamento comunitário” realmente focado nas comunidades seria, na prática, inviável. “As pesquisas demonstram que o policiamento comunitário não empodera as comunidades de maneiras significativas. Amplia o poder da polícia, mas nada faz para reduzir o peso do sobrepoliciamento nas pessoas não-brancas e nos pobres”, afirma. Ao comentar sobre as reuniões comunitárias realizadas com a polícia em cidades dos EUA, Vitale mostra como esses espaços são dominados por proprietários de imóveis e comerciantes, deixando sem representação as opiniões de inquilinos, jovens, pessoas em situação de rua, imigrantes e dos socialmente marginalizados. Curiosamente, é um diagnóstico que lembra muito o da “cooptação dos Consegs (Conselhos de Segurança) por agrupamentos conservadores formados por civis e policiais” mencionada por Felitte, o que poderia indicar que o “atraso” brasileiro e a “modernidade” dos EUA podem não estar tão distantes assim uma da outra quando o assunto é polícia.
Ao tratar do caráter autoritário das polícias brasileiras, Felitte em alguns momentos identifica esse traço como uma “estrutura arcaica”, que chama de “entulho autoritário”, “completamente inadequada a preceitos democráticos”. Não deixa de ser uma visão otimista, já que, segundo o Houaiss, arcaico é algo que deixou de ser usado há muito tempo, sinônimo de antiquado, anacrônico, obsoleto, e entulho são os escombros, o que não serve mais, o que se joga fora. Seguindo a lógica dessa escolha de palavras, a gente poderia concluir que não haveria mais lugar nos dias de hoje para o policiamento autoritário de controle social, o qual só poderia estar com seus dias contados, destinado a ser varrido para fora de casa. Eu tendo a acreditar, por outro lado, que estruturas “arcaicas” nunca poderiam ter a capacidade de resistir às mudanças descritas por Felitte ao longo do livro se não tivessem encontrado um lugar e uma função na configuração do Brasil moderno. É só pensar, por exemplo, no quanto a elite empresarial e financeira valoriza o papel da brutalidade policial na implantação de medidas pró-mercado, ainda que poucos de seus porta-vozes reconheçam isso publicamente e sem meias palavras, como faz o economista e ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, ao dizer que “nenhuma boquinha terminou no Brasil sem certa dose de esperneio e gás lacrimogêneo” ou que, “se não há gás lacrimogêneo, e não há descontentes, alguma coisa se perdeu no caminho”.
No mundo, o melhor exemplo de como estruturas policialescas de controle social sobre populações vulnerabilizadas podem, sim, se integrar perfeitamente às democracias liberais e ao que existe de mais moderno no capitalismo global é Israel, como analisa Stephen Graham em Cidades Sitadas (Boitempo, 2017). Juntamente com os EUA, a “única democracia do Oriente Médio” montou complexos industriais-militares que não só garantem o controle social permanente da população palestina, como ainda transformou as tecnologias de repressão usadas na Faixa de Gaza e Cisjordânia em “soluções de segurança” de ponta, comprovadas em batalha, que são vendidas a Estados e empresas do mundo todo, inclusive no Brasil.
É nessa direção que o livro avança no seu capítulo final, o mais instigante da obra, em que o autor se abre para o debate “entre aqueles que consideram que o Brasil ainda esteja atravessando processo de transição democrática e aqueles que afirmam serem as heranças da ditadura não algo pontual, mas verdadeiro estado de exceção permanente”, encontrando paralelos entre os estados de exceção da realidade brasileira com situações semelhantes nos EUA, França e Itália, onde a vigilância e o controle social estariam se proliferando nos últimos anos. Como se o resto do mundo estivesse ficando tristemente mais parecido com o Brasil no que temos de pior.
É aí que, a partir da noção de Achille Mbembe de que “a democracia, por vezes, depende de atos de violência estatal contra camadas da população para sua própria existência”, Felitte vai concluir, de maneira provocadora, que “as práticas e instituições de exceção representadas pelas polícias brasileiras não seriam contrárias ou paradoxais à construção do nosso Estado democrático de direito, mas parte central dele”. E por isso tão difícil de serem modificadas.
Retrato do passado, alerta sobre o futuro
Mais do que um retrato de um passado que precisamos superar, História da Polícia no Brasil merece ser lido como um alerta sobre um futuro que precisamos impedir que se torne real. O fato é que conservar um aparato de policiamento autoritário, como temos feito, tem tudo para dar ruim. Aliás, como avisa Felitte, já deu ruim uma vez. “Sem reformular estruturas policiais, o breve e frágil período democrático brasileiro pagou o preço pela manutenção dos entulhos autoritários de seu aparato repressivo”, escreve a respeito do período entre 1945 e 1964. É que as polícias daquele “período democrático”, além de participarem das movimentações que levaram ao golpe de 1964, ainda garantiram o terreno fértil sobre o qual a ditadura civil-militar criou o seu aparato de repressão.
A conclusão é clara. As polícias são hoje uma pedra no meio do caminho — na verdade, um baita de um rochedo — da democracia brasileira, seja pelo que fazem hoje, ao manter as populações vulnerabilizadas em um estado de exceção não muito diferente do que o país todo vivia durante suas ditaduras stricto sensu, seja pelo risco do que essas corporações podem vir a fazer amanhã, ao servirem como combustível para novos rompimentos institucionais.
Se eu tinha grandes esperanças quando ajudei a criar a Ponte em 2014, continuo a alimentá-las em 2023, apenas buscando manter um pouco mais os pés no chão, por ter compreendido um pouco melhor o tamanho do desafio que a gente abraçou. Esperança que é, antes de mais nada, uma estratégia de luta, nascida da constatação de que não pode haver um projeto de Brasil democrático que não passe por uma mudança total no sistema de policiamento autoritário que sempre dominou o país.
É um dilema do mesmo tipo constatado no surrado vaticínio atribuído ao naturalista francês Auguste de Saint Hilaire: “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Pois bem. Ou o Brasil acaba com suas polícias como existem hoje, ou essas mesmas polícias — e seus irmãos das Forças Armadas — ainda vão ajudar a acabar com o que resta de democracia no Brasil.
(*) Fausto Salvadori é jornalista, cofundador da Ponte Jornalismo