‘Quantos Fernandos esses policiais já não mataram? Quantas famílias eles já destruíram?’, pergunta Cleuza. Os três PMs acusados de matar seu filho em 2015 foram absolvidos dois anos depois
Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016
A dor de uma mãe que perde um filho de forma inesperada e violenta nunca diminui, nunca passa. É um peso que aumenta a cada dia com a ausência e a saudade. Nas palavras de Cleuza Glória da Silva, mãe do jovem Fernando Henrique da Silva, é como se o coração sangrasse a todo momento. Fernando tinha apenas 18 anos e foi morto por policiais militares no dia 7 de setembro de 2015.
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Naquela tarde de feriado, no bairro do Butantã, zona oeste da capital paulista, Fernando Henrique levou quatro tiros em diversas regiões do corpo e teria sido jogado de um telhado, já rendido pelos policiais, que foram atender a um chamado de roubo de moto na região.
— Eu queria que você [o policial que jogou o Fernando] ficasse um momento no meu lugar para saber como é a dor que eu estou sentindo — diz Cleuza.
Um dos disparos que matou o jovem foi nas costas. Ele estava com os braços algemados para trás e apresentava escoriações nos joelhos, provavelmente pela queda.
Na lembrança da mãe saudosa, Fernando Henrique era um rapaz alegre e prestativo.
— Meu filho era bondoso com todos. Não merecia um fim assim — lamenta Cleuza.
A mãe se revolta sempre que se lembra da morte do filho.
— Que polícia é essa que faz isso? Não confio mais na polícia. Eles deveriam proteger a comunidade, proteger os jovens, proteger os adultos e não matar. A obrigação deles ali era prender e não matar. São uns assassinos — desabafa.
Fernando Henrique estava com um amigo, Paulo Henrique de Oliveira, de 23 anos, que também foi morto pelos policiais militares naquela mesma tarde.
Na versão dos policiais, que depois foi contestada pela investigação feita pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil paulista, os dois rapazes, em fuga, atiraram contra os policiais, que apenas revidaram.
Mais um caso típico da chamada “morte decorrente de intervenção policial”, antes chamada “resistência seguida de morte”, quando o policial afirma que matou o suspeito para se defender. Na prática, esse tipo de registro policial, enraizado no cotidiano das delegacias do país na época da ditadura militar, responsabiliza a vítima e isenta o policial pelo crime de homicídio. O que devia ser investigado, se o agente de segurança pública agiu ou não dentro dos limites da lei, costuma ficar de lado. Imagens feitas por um cinegrafista amador e outras registradas pelo circuito de segurança de uma casa comprovaram que os dois rapazes foram executados pelos PMs após se renderem.
O relato da suposta vítima do roubo de moto sustentava que eles estavam com armas de fogo. Durante a tentativa de roubo, eles ameaçaram a vítima com uma faca.
— Quantos Fernandos esses policiais já não mataram? Quantas famílias eles já destruíram e depois mentiram forjando que não tinham feito nada? Não vou deixar a morte do meu filho passar sem Justiça —diz Cleuza.
O enredo da morte dos dois jovens começou pouco depois das 13h30 daquela segunda-feira, final de feriado prolongado de 7 de setembro, quando eles tentaram roubar um motoqueiro que estava na rua Moacir Miguel da Silva, no Jardim Bonfliglioli, perto da rodovia Raposo Tavares, na zona oeste de São Paulo.
Paulo Henrique e Fernando também estavam numa moto. A tentativa de roubo foi denunciada e eles passaram a ser perseguidos por carros da Polícia Militar.
A fuga durou cerca de 20 minutos. Algumas viaturas foram despistadas quando a dupla entrou em alta velocidade pela contramão em algumas ruas e pela rodovia Raposo Tavares, uma das mais movimentadas de São Paulo. Os policias atiraram nos dois rapazes. O disparo e a moto na contramão assustaram os motoristas que estavam na rodovia, houve um acidente entre dois carros e um deles rodou na pista e atingiu um terceiro veículo. A viatura do 23º Batalhão da PM, onde estavam os soldados Tyson Oliveira Batiane e Silvano Clayton dos Reis, bateu em carro Fiat Uno, porém continuou a perseguição. Nos acidentes provocados durante a fuga não houve registro de feridos.
Naquele momento da perseguição, o caso já tinha sido alertado pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) e todas as viaturas da região recebiam informações sobre dois rapazes que fugiam em uma moto, sobre o acidente de trânsito envolvendo os PMs e também sobre uma suposta troca de tiros. A partir dali, a ocorrência policial ganhou relevância e se tornou prioridade para todos os policiais na região do Butantã. Os dois jovens voltaram a ser localizados próximo da USP (Universidade de São Paulo), a mais três quilômetros do local da tentativa de roubo. Lá, os dois abandonaram a moto, uma Honda CG 125, de cor preta, em uma pracinha da rua Corinto e continuaram a fuga a pé pelas ruas do bairro.
Paulo Henrique, o amigo de Fernando Henrique, era solteiro, tinha completado o primeiro grau do currículo escolar, estava com aproximadamente 80 quilos e tinha 1,80 metro de altura. No braço esquerdo, ele tinha tatuado o nome Zeti.
O rapaz de 23 anos estava dentro de uma lixeira na esquina da rua Conceição Russomano Pugliese com a rua Maria Burqueta Marcondes, onde tentou se esconder, mas foi encontrado pelos policiais e baleado. Ele foi morto com dois tiros no peito.
Na versão dos policiais militares, Paulo Henrique reagiu ao ser preso, atirou e foi morto no revide. Porém, uma câmera de segurança posicionada em um trecho sem saída de rua Conceição Russomano Pugliese registrou toda a cena e mostra uma realidade totalmente diferente daquela relatada pelos policiais militares.
Uma imagem da câmera de segurança mostrou Paulo Henrique correndo pela rua, por volta das 14h10. Ele olhou para os lados e se atirou dentro da lixeira. Cerca de 50 segundos depois, a lixeira se abriu e o rapaz saiu com as mãos para o alto. Ele estava desarmado e, num gesto de rendição, tirou a camisa que usava por cima de uma camiseta branca e deitou no chão com os braços estendidos.
Primeiro, Paulo Henrique deitou de costas e, então, como se estivesse recebendo ordens de alguém. Depois, ele deitou de bruços e com as os braços estendidos. Aos poucos, três policiais que apontaram as armas para Paulo Henrique, se aproximaram e entraram no enquadramento da câmera de segurança. Um deles usava o capacete da Rocam, o patrulhamento de motociclistas da PM.
Um outro policial apoiou o joelho nas costas de Paulo Henrique e colocou as algemas em seus pulsos. Enquanto isso, os outros PMs, entre eles uma soldado feminina com o cabelo preso em um coque, verificaram a lixeira de onde Paulo Henrique havia saído.
Em menos de dois minutos, chegaram mais duas viaturas e uma moto da Rocam. Uma das viaturas era a 23.300, dos soldados Tyson Oliveira e Silvano Reis, que participaram do início da perseguição.
Na sequência, as imagens da câmera de segurança mostraram que as algemas foram retiradas dos pulsos de Paulo Henrique pelo mesmo PM que o imobilizou. O jovem foi levado até um muro branco, onde permaneceu sentado e cercado pelos PMs. Paulo Henrique gesticulou bastante e apontou algumas vezes na direção da rua Maria Marcondes. As imagens também mostraram o momento em que um dos policiais pisou no joelho direito do rapaz.
Quando a gravação marcou o horário de 14h17min44seg, três dos policiais levantaram Paulo Henrique e o levaram até a esquina.
Paulo Henrique deu sete passos com os policiais militares o segurando pelo braço e foi brigado a sentar novamente. Às 14h18min30seg, a imagem registrou quando ele foi baleado à queima roupa. Paulo Henrique agonizou no chão enquanto um policial correu até a viatura 23.300 e apanhou um objeto no banco de trás. O mesmo PM também abriu a porta da frente e, em seguida, voltou para perto do corpo de Paulo Henrique.
A poucos metros do local onde o amigo foi friamente assassinado, Fernando Henrique também teria um destino trágico. No desespero e com o vigor de um jovem de 18 anos, ele invadiu uma das residências da rua e tentou continuar a fuga pulando pelos telhados das casas vizinhas.
Em uma outra viatura, chegaram os policiais Flávio Lapiana de Lima e Fábio Gambale da Silva, ambos do 16º Batalhão da PM. Segundo a investigação, eles que descobriram a casa invadida por Fernando Henrique e o localizaram no telhado.
No caso do Fernando, um vídeo de três minutos e meio, gravado com celular, de uma distância que engloba todos os telhados das casas vizinhas, mostrou como foi a captura e a execução do rapaz, atingido por quatro tiros. Fernando apareceu no vídeo com uma blusa escura, já com as mãos para o alto e na mira das armas dos dois policiais que subiram no muro de uma casa próxima. Às costas de Fernando Henrique, apareceu na imagem um policial da Rocam que subiu por outro telhado. Ele se aproximou do rapaz e o fez deitar de bruços no telhado. Na sequência, Fernando Henrique foi imobilizado e algemado com os braços para trás. A cena aconteceu sob a vigilância dos outros dois PMs que continuaram no muro, distante cerca de dez metros.
O policial da Rocam levantou o Fernando Henrique que, por sua vez, não ofereceu nenhum tipo de resistência ao ser cercado pelos militares. Juntos, um dos PMs e o rapaz deram três passos no plano inclinado do telhado. Na beirada, Fernando Henrique cai de uma altura de quase três metros.
Enquanto o policial retornou pelo telhado para descer pelo mesmo muro por onde havia subido, o áudio do vídeo captou o primeiro disparo. Quatro pássaros que estavam em telhados próximos se assustaram e saíram em revoada. Mais três disparos foram ouvidos. Assim como Paulo Henrique, Fernando Henrique também já não vivia mais naquele momento.
No boletim de ocorrência registrado na mesma tarde das duas execuções, sem as informações reveladas pelos vídeos, e com apenas as informações das testemunhas apresentadas pelos próprios policiais militares, Fernando Henrique não teve nem o nome citado. Ele apareceu como um “desconhecido”, com cerca de 70 quilos, 1,80m de altura e uma tatuagem de flores na perna direita. Informações que pouco revelavam sobre o menino alegre e afetuoso, que era um orgulho para a mãe. Orgulho por terem, juntos, enfrentado e sobrevivido a enormes desafios. A versão dos dos policiais foi questionada por uma investigação da Polícia Civil, pelos laudos da perícias e pela pressão da imprensa sobre o caso, que foi revelado pela Ponte Jornalismo.
No dia 5 de outubro de 2015, dois antes de os crimes completarem um mês, o DHPP concluiu o inquérito policial e pediu à Justiça a prisão preventiva de cinco dos 11 policiais que estariam envolvidos diretamente no assassinato dos dois rapazes. A investigação da Polícia Civil concluiu que Tyson Oliveira Batiane e Silvano Reis, os dois PMs que estavam na viatura 23.300 e perseguiram os dois rapazes do Jardim Bonfliglioli até o Butantã, atiraram e mataram Paulo Henrique. O soldado Silvio André Conceição foi identificado durante a investigação como o PM que algemou e depois soltou Paulo Henrique antes de o jovem ser morto.
No caso da morte do Fernando, que levou quatro tiros após ser jogado do telhado, a Polícia Civil concluiu que os soldados Flávio Lapiana de Lima e Fábio Gambale da Silva executaram o rapaz, que estava algemado com os braços para trás, e mentiram no registro da ocorrência. A investigação do DHPP também indiciou o soldado Samuel Paes, da Rocam. Era ele quem aparecia nas imagens gravadas no momento da prisão de Fernando Henrique.
Em março de 2017, o Tribunal do Júri condenou o policial militar Tyson Oliveira Bastiane a 12 anos e cinco meses de prisão pelo assassinato de Paulo Henrique. Ele foi condenado pelos crimes de homicídio, posse ilegal de arma, fraude processual e falsidade ideológica. O policial militar Silvano Clayton dos Reis foi condenado a 4 anos e 11 meses por posse ilegal de arma, fraude processual e falsidade ideológica. Os jurados absolveram o PM Sílvio André Conceição.
Já os três PMs denunciados pela morte de Fernando Henrique foram absolvidos. Os jurados concluíram que Flavio Lapiana de Lima, Fabio Gambale da Silva e Samuel Paes eram inocentes.
— A morte do meu filho foi uma desgraça terrível na minha vida. Arrancou um pedaço enorme do pouco que sobrava em mim. Só a Justiça pode diminuir um pouco essa dor. As pessoas que executaram o meu filho devem ser responsabilizadas por isso. Tiraram a vida de um rapaz bom, de 18 anos de idade. Se ele estava fazendo algo errado deveria ser preso, para ter a chance de se recuperar, mas não morrer dessa maneira cruel na mão de assassinos sem coração.
O sofrimento em intensidade máxima relacionado à violência policial esteve presente em dois momentos da vida de Cleuza, mãe de Fernando Henrique. A primeira vez foi quando ela ainda era menor de idade, com 17 anos, e morava em Minas Gerais. Cleuza foi violentada por um sargento da PM mineira.
— Eu estava patinando com a minha irmã, em Belo Horizonte, quando esse policial me agarrou e me levou para dentro de uma casa. Quando eu vi ele já estava me violentando. Eu guardei este segredo por quase vinte anos — revelou.
O estupro praticado pelo sargento da PM mineira resultou em gravidez. A vergonha e o medo de contar para a família obrigaram Cleuza a fugir para São Paulo.
— Tive medo do meu pai. Tive medo da reação dele.
Para garantir o próprio sustento e o do bebê recém–nascido, ela teve que trabalhar durante anos como faxineira. As marcas da violência sexual também apagaram a vontade que a jovem tinha de seguir os passos do avô e se tornar também uma policial militar.
— Eu só queria esquecer a dor e o trauma do estupro, mas nunca consegui. Escondi de todos esse sofrimento — desabafou.
Para o filho nunca faltou amor e atenção. Ela o educou a duras penas e da melhor forma possível.
O filho gerado no estupro foi batizado como Fernando Henrique, o jovem que dezoito anos depois foi assassinado por integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
— Minha história é muito triste, ela dói muito. Me agarro em Deus, mas desabo todos os dias. Sou mãe de família, tenho três filhos e me dedico ao máximo para criá-los. Vou lutando como dá. Quero que a Justiça seja feita.