Autoridades minimizam violência, abusos e estimulam mortes, e têm como resultado o desvio de função: polícia é para proteger as pessoas, não cometer crimes
Recentemente vídeos mostraram episódios chocantes de abusos e torturas policiais em Barueri e Carapicuíba, ambas cidades na Grande São Paulo e no Jaçanã, na zona norte da capital paulista. Ainda, na semana passada, o adolescente Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, foi sequestrado e morto supostamente por PMs. O crime foi sucedido de manifestações populares na Vila Clara, na zona sul de São Paulo e mais acusações contra policiais militares. Durante e após os protestos, os moradores foram reprimidos com violência pela PM.
Apesar de a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ter negado inicialmente que policiais estivessem envolvidos no assassinato do adolescente, após a divulgação de imagens do local do crime, o sargento da PM Adriano Fernandes de Campos foi identificado e preso acusado pela morte do jovem. Todos esses recentes casos tiveram ampla cobertura nas páginas da Ponte.
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Mesmo diante de tantas evidências, as autoridades do Governo de São Paulo costumam minimizar os casos de torturas e abusos policiais, tratando-os como meros excessos, assim como tratam assassinatos e execuções como confrontos ou resistências seguidas de morte.
Quem atua na área de direitos humanos e segurança pública sabe que a impunidade é garantida aos maus policiais em mais 90% dos casos, já que quem investiga policiais são sempre os próprios colegas dos acusados. O corporativismo e a complacência com a violência da polícia costumam prevalecer, inclusive quando os casos são levados ao Judiciário.
O assassinato do menino Guilherme indica, além da brutalidade policial, a existência de milícias e grupos de extermínio que se apresentam como empresas de segurança. Sabemos que muitas dessas empresas são formalmente ou informalmente chefiadas por policiais, o que é ilegal. São policiais que investem na insegurança pública para venderem serviços particulares de segurança privada.
Diante de tantos casos diários de brutalidade policial temos que denunciar as autoridades que estimulam esses crimes, como o presidente Jair Bolsonaro, os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ), e o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. São eles os principais fiadores da escalada de violência policial em São Paulo e no País.
O ex-ministro Sérgio Moro, por exemplo, foi autor do projeto de ampliação das excludentes de ilicitude para que policiais não fossem responsabilizados por abusos e mortes se agissem com “medo”, “surpresa”, “violenta emoção” ou na “iminência de conflito armado”.
A proposta se configurava numa verdadeira “licença para matar” e, felizmente, foi rechaçada pelo Congresso Nacional em 2019. Já o presidente e os governadores costumam, desde a campanha eleitoral, fazer discursos estimulando a violência policial. Em São Paulo, PMs que participaram de uma ação violenta com várias mortes em 2019, em Guararema, interior do estado, foram homenageados no Palácio dos Bandeirantes pelo Governador João Doria.
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Há poucos dias o governo Bolsonaro retirou os dados de violência policial do rol de violações de direitos humanos dos atendimentos do Disque 100 e da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Provavelmente suprimiu os números de violência policial do relatório anual da Ouvidoria e do Disque 100 com o intuito de atender seus apoiadores, principalmente os policiais militares. Após uma ação do Ministério Público Federal, o Ministério da Família e dos Direitos Humanos teve que apresentar as informações.
A imprensa brasileira fez grande cobertura do caso George Floyd e das manifestações nos Estados Unidos contra a violência policial e o racismo. Porém, no Brasil não tem sido dada a mesma visibilidade e destaque ao racismo nas ações das polícias.
Em 2019, as polícias americanas mataram 259 negros, já as polícias brasileiras mataram 4.353 negros. No total, 1.099 civis foram mortos em 2019 pelas polícias dos Estados Unidos, enquanto as polícias brasileiras mataram 5.804 pessoas. 75% dos mortos por policiais no Brasil são negros, conforme números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2019, a polícia de São Paulo matou 867 pessoas, 99% eram pobres e 65% jovens negros, conforme dados da Ouvidoria de Polícia.
No mesmo estado de São Paulo, os números demonstram aumento da violência policial durante a quarentena, com 371 mortes praticadas por policiais nos primeiros 4 meses do ano. Números superiores aos anos anteriores. Os homicídios praticados por policiais aumentaram mesmo no cenário de diminuição dos crimes em geral durante o isolamento social.
Devemos também levar em conta que existem indicativos de que as PMs dos estados se tornaram poderes paralelos, não mais subordinadas politicamente aos governos estaduais e, sim, ao governo federal. Dispostas à violência contra jovens pobres nas periferias, mas também a promoverem perseguições políticas e ideológicas contra quem faça críticas ou oposição ao governo Bolsonaro. As repressões violentas contra as manifestações antifascistas são provas disso.
Por fim, a sociedade deve ter clareza que uma polícia eficiente certamente não é a que mata e tortura pessoas, inclusive as suspeitas de crimes, mas uma polícia que previne e investiga crimes, cumprindo as leis e a Constituição Federal. A sociedade não pode ser conivente com a violência policial. Uma polícia violenta e descontrolada pode atingir supostos criminosos, mas também pode vitimar pessoas inocentes, enfim, qualquer um de nós. O papel dos policiais é de proteger as pessoas e a sociedade, e não de cometer crimes.
Ariel de Castro Alves é advogado, especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública pela PUC – SP, membro do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e da Ação dos Cristãos contra a Tortura. Também é Conselheiro do Condepe- Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo.
[…] polícia brasileira nunca matou tanto em sua história. Com o aval do governo Bolsonaro e estímulo dos governos estaduais – leia-se Doria (São Paulo), Witzel (Rio de Janeiro), dentre outros – a brutalidade […]