Editorial | A Ponte apoia Lula no primeiro turno: o que isso significa

Vitória de Lula é importante para tirar Bolsonaro e pela simbologia de levar um ex-presidiário à Presidência de um país campeão do encarceramento em massa. Mas a Ponte mantém seu compromisso: não passará pano para violações de direitos humanos

Foto: Ricardo Stuckert

Desde que criamos a Ponte, em 2014, não foram poucas as vezes em que a gente denunciou políticas arbitrárias, crimes e violações de direitos humanos praticadas por governos do PT.

Não dá para falar, por exemplo, da explosão do encarceramento em massa das últimas décadas, que vitimou principalmente os jovens negros, sem mencionar o impacto da desastrosa lei de drogas aprovada em 2006 pelo governo Lula — um erro histórico que a gente denunciou até no Washington Post. Também denunciamos o impacto social da construção da usina de Belo Monte, que fez da cidade de Altamira uma das capitais do homicídio no Brasil. Sem falar que nunca passamos pano para os governadores petistas que sujaram as mãos no sangue do genocídio da população preta, pobre e periférica, fosse participando ativamente de massacres e chacinas, como faz o governo de Rui Costa, na Bahia, fosse atuando para garantir a continuidade da prática racista dos enquadros, como fizeram todos os demais. Em São Paulo, denunciamos as práticas higienistas que o prefeito Fernando Haddad adotou contra a população de rua (sem deixar de apontar, ao mesmo tempo, os avanços do programa De Braços Abertos). E por aí afora.

Se a gente for falar do candidato a vice de Lula, então… Como governador, Geraldo Alckmin foi simplesmente o cara que acabou com as (poucas) iniciativas dos governos tucanos de combate à violência de Estado e tirou de vez as focinheiras dos policiais, permitindo que praticassem alguns dos piores massacres da história do Brasil, como os Crimes de Maio de 2006, em que o Estado de São Paulo matou mais, em dez dias, do que as mortes políticas cometidas pela ditadura militar no país todo em 21 anos. Num mundo justo, Geraldo Alckmin estaria hoje respondendo por crimes contra a humanidade em Haia, e não cantando a Internacional numa chapa de centro-esquerda.

Mas não existe isso de mundo justo: só podemos esperar receber a justiça que somos capazes de criar juntos. E acontece que, hoje, Lula lidera uma candidatura à Presidência que tem a possibilidade real de derrotar, ainda no primeiro turno, um governo que é praticamente um resumo para livro didático das definições de fascismo. Por isso, no momento político que estamos vivendo agora, não temos a menor dúvida. Pela primeira vez, a Ponte vai assumir explicitamente a posição de apoiar um candidato em uma disputa eleitoral. E esse candidato é Lula. Lá. Brilha uma estrela.

A gente fez algo parecido em 2018, quando publicamos uma série de editoriais contra a candidatura de Jair Bolsonaro, sem pedir voto em nenhum candidato. O contexto de 2022, contudo, pede compromisso e clareza: não estamos apenas repudiando Bolsonaro, mas recomendando o voto em Lula. Impor à extrema-direita uma derrota humilhante no primeiro turno é a melhor opção para ajudar a diminuir o poder desses grupos que infectaram a vida política brasileira e que infelizmente vieram para ficar.

A vitória de Lula é importante não só para ajudar a evitar um possível golpe de Estado executado pelos militares e seu pau-mandado presidencial, como tanto se alega, mas para impedir que esse golpe continue a ocorrer. Porque há um golpe em marcha, que é o desmonte dos princípios dos direitos humanos, do bem-estar e da justiça social instaurados pela Constituição de 88. Um desmonte que começou com o governo Michel Temer, após o impeachment de Dilma, e se intensificou com Bolsonaro. Um dos textos que publicamos em 2018, e que foi reproduzido em outros meios, já indicava isso: Bolsonaro poderia destruir a democracia brasileira com o Congresso, com tudo, sem qualquer ruptura institucional explícita. (Não que a gente tenha sido profético, afinal, tudo isso era óbvio; quem esperou algo diferente é que era otário demais.) E foi o que aconteceu. Segundo qualquer parâmetro, o Brasil de 2022 é menos democrático do que o de quatro anos atrás. E mais desigual. E mais violento. 

Isso precisa mudar. O próximo governo terá o desafio de assumir um país em clima de pós-guerra, após quatro anos de destruição, e ainda sendo obrigado a lidar com um exército, armado até os dentes, de aproximadamente 35% de brasileiros que se identificam com um ideário fascista. 

Nesse sentido, “a frente ampla pela democracia” da chapa de Lula é uma proposta que acaba fazendo sentido ao apontar para a necessidade de pactos em torno de um projeto de reconstrução nacional. A amplitude das alianças dessa chapa é a força, mas também será a fraqueza de um eventual governo Lula. Afinal, não vai ser fácil implantar uma política antirracista, a favor da justiça social e da igualdade de gênero, aliado a figuras de uma elite que tradicionalmente compactuou com os piores crimes cometidos em nome da manutenção de seus privilégios.

E é claro que, para a Ponte, é muito significativo ver a chegada à Presidência de um homem que passou 580 dias preso por causa de uma acusação sem provas, levada a cabo por policiais, promotores, juízes e desembargadores que se uniram para destruir um ex-operário. Nesse sentido, mesmo sem ser pobre nem negro, Lula, afinal, não é lá tão diferente assim dos jovens alvos de prisões injustas que a Ponte vem ajudando a libertar desde que foi criada. O último foi o estudante de marketing Gabriel Apolinário, de 18 anos, alvo de um flagrante forjado de tráfico de drogas que o manteve preso por 59 dias, com a cumplicidade da Polícia Civil, do Ministério Público e do Judiciário, e do qual só foi inocentado depois de dois anos — as reportagens da Ponte, que acompanhou a história desde o início, foram usadas na sua defesa.

O fato de Lula ser um ex-presidiário, que os bolsominions usam como xingamento, é uma de suas qualidades. Como alguém que sofreu na pele uma prisão sem provas, Lula bem que poderia assumir o compromisso de ajudar a reformar o sistema de justiça criminal que produz tantas injustiças — ou pelo menos de não ajudar a piorá-lo, como fez em 2006. Dado o histórico de seus governos, nada indica que o fará. Mas será um governo diferente, num país diferente, e por isso tudo está em disputa.

Ajude a Ponte!

Quanto à Ponte, a recomendação que fazemos para o voto em Lula não tem nada a ver com um cheque em branco. Seguiremos retratando os acertos e desacertos dos governos a partir do ponto de vista de quem luta, sofre e vive nas quebradas. Conforme o salve de Mano Brown: “O nosso compromisso não é com o PT, não é com o Lula, ou com a Dilma, é com quem pensa no nosso povo”. Lula e o PT podem estar certos de que não poderão contar, como nunca contaram, com qualquer passada de pano da nossa parte. A Ponte vai seguir fazendo o que sempre fez, como sempre fez, ganhe quem ganhar a eleição.

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