Um promotor que desafia a violência policial em São Paulo

    Há dez anos na promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, Eduardo Valério afirma que discursos violentos de governantes geram ações policiais truculentas, critica medidas do governo Bolsonaro e pacote anticrime de Moro: ‘pode facilmente criar um mecanismo stalinista de perseguição’

    Valério considera que ‘maior legado’ à frente da promotoria de DH é manter direitos conquistados | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    “A manutenção dos direitos duramente conquistados nos últimos anos”. Assim, sem hesitar um segundo, o promotor Eduardo Valério responde ao ser questionado sobre qual a maior preocupação da Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo. Afinal, trata-se de uma das áreas mais afetadas pela onda conservadora representada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) e pelo governador paulista, João Doria (PSDB).

    O promotor recebeu a Ponte na sede do MP, no centro de São Paulo, no final de junho. “Temos um nível indigente intelectual na população, que não faz a menor ideia do que são os direitos humanos e o que isso significou em termos de conquista da humanidade”, pontua.

    Durante a entrevista, Valério afirma que considera os governos paulistas incompetentes em evitar que policiais, civis ou militares, matem e fiquem impunes e faz uma autocrítica à atuação do MP nesses casos. “O erro da instituição foi achar que processando maus policiais estava fazendo controle externo da polícia. Essa atividade [de fazer fiscalização e o controle externo da atividade policial] pressupõe uma visão estrutural da polícia”, pontua.

    Esse amadurecimento da promotoria ficou provado na recente denúncia oferecida contra o Estado, de maio deste ano, por racismo e pela alta letalidade policial. Reportagens da Ponte foram usadas como base do documento. Para ele, a forma de existir e atuar da polícia traz resquícios da ditadura.

    Valério também lembra dos Crimes de Maio, quando a resposta do Estado aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) deixou mais de 500 mortos, e admite ter cometido um erro à época ao apoiar a polícia.

    O promotor ainda manifesta preocupação com alguns pontos do pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e conta como é a relação de promotores com juízes. “Um influenciar o outro e combinar, não. Isso de jeito nenhum acontece”, em referência ao vazamento de conversas ligadas à Operação Lava Jato, divulgadas em reportagens do The Intercept Brasil, que indicavam que Moro, juiz da causa, e promotores, entre eles Deltan Dallagnol, teriam combinado passos importantes do processo e até decisões.

    Confira a entrevista do promotor Eduardo Valério à Ponte:

    Ponte – Por qual motivo específico o senhor decidiu entrar com a ação que cobra condenação de SP pela letalidade policial?
    Eduardo Valério – Foi o conjunto da obra. Temos recebido informações de casos envolvendo a letalidade policial e essa promotoria não precisa reagir a partir de representações ou de casos concretos. Atuamos a partir de notícias, informações, inclusive de jornais. O trabalho foi feito com base em uma maturação de algum tempo, não foi uma ação de momento, de impulso. Na medida em que as informações foram chegando, instauramos inquérito, compilamos tudo isso e resultou na ação, de forma bem propositiva, bem abrangente.

    Ponte – Tem expectativa de quando a resposta virá?
    Eduardo Valério – Já houve um primeiro despacho da juíza, abriu vista novamente para a promotoria se manifestar sobre a possibilidade orçamentária e financeira do Estado de arcar com aquelas providências que estão sendo pedidas. Nós levantamos dados junto ao MP de contas e já fizemos essa manifestação e retornou ao Judiciário. Sim, é possível, existe superávit no orçamento e irregularidades no orçamento da Segurança Pública, que demonstram a possibilidade de arcar com os custos que, aliás, embora não estimemos quais esses custos, não há como, uma boa parte dos pedidos iniciais nem têm custos. São custos operacionais básicos.

    Ponte – Em 2017, o Estado registrou 939 mortes provocadas por policiais, a mais alta na história, segundo os números oficiais. Por que a ação foi feita agora e não naquele momento?
    Eduardo Valério –
    Não conseguimos reagir imediatamente aos fatos na medida em que eles vão acontecendo por vários motivos. Eu destaco dois: o primeiro deles é que a promotoria tem várias outras atribuições e a gente não consegue dar conta das coisas no dia a dia no tempo da rua. E o segundo é que uma ação como essa não pode ser feita como uma ação ordinária, comum. Nós encomendamos no curso do inquérito civil um trabalho feito pela socióloga do órgão técnico do MP. Ela analisou vários relatórios de organizações não-governamentais e entidades da sociedade civil, compilando esses dados, porque uma ação dessas não pode estar baseada simplesmente em um único dado. O que tentamos demonstrar ali é uma tendência de letalidade, tanto de policiais que morrem quanto os que matam. É dessa tendência, desse estado constitucional de coisas que advêm os pedidos. Não é um dado, um fato, um número que aconteceu em um ano. É uma história. E isso, portanto, precisava ser demonstrado de forma clara, com método, linha de argumentação e que fosse, sobretudo, jurídica, afinal falamos de uma ação de uma ação judicial.

    Ponte – Vemos em 2019 uma mudança de tendência. Até 2017, tínhamos crescimento de letalidade, que caiu em 2018, e retomou com o governo Doria. Essa retomada está relacionada aos discursos mais bélicos na segurança pública?
    Eduardo Valério – Até há um ou outro estudo demonstrando isso. Eu não teria condições de afirmar com base nesses estudos. Mas, intuitivamente, a gente imagina que sim. Cada momento em que um governador, como esse do Rio de Janeiro [Wilson Witzel, do PSC] está fazendo atualmente, como o próprio presidente da república faz, como o governador daqui [de São Paulo, João Doria] fez durante a campanha e vem fazendo durante o mandato, no sentido de destacar esse tipo de atuação policial truculenta, violenta, condecorando policiais que se envolvem em ocorrências com morte, intuitivamente isso sinaliza para a tropa que essa é uma atitude que o governo apoia. Ora, o governo é o comando da polícia. Se o comando está dizendo e condecorando quem conclui uma ocorrência policial com morte ao em vez de prisão, está sinalizando que é esse o modo de agir correto da polícia.

    Ponte – Condecorou antes dos estudos técnicos do caso…
    Eduardo Valério –
    Exato! Se houve excesso de legítima defesa, exclusão de ilicitude. Esses sinais que os governantes dão são compreendidos na tropa como qual o caminho a seguir.

    Ponte – Um ponto que chama a atenção no documento da ação civil é o que trata de que a PM atual tem em suas ações resquícios da ditadura. Por que destaca esse ponto?
    Eduardo Valério –
    Porque um dos fundamentos jurídicos da nossa ação é o que se chama de Justiça de transição. Ela é um conjunto de medidas jurídicas e políticas que devem ser aplicadas em uma sociedade quando ela transita de um regime autoritário para um regime democrático. Essa é uma construção baseada em estudos internacionais, textos de estudiosos, e que foi consagrado em documentos da ONU a partir de experiências concretas, basicamente Portugal e Espanha, depois do período de Salazar e Franco, no Cone Sul, depois das ditaduras de Chile, Argentina e Uruguai, e no Brasil. Um dos fundamentos da Justiça de transição é justamente a reforma das instituições para que as violações de direitos humanos que marcavam o regime anterior, autoritário, não voltem a se reproduzir em um regime democrático que se inaugura.

    Ponte – O que pode ser visto na realidade?
    Eduardo Valério – O que estudiosos de polícia e segurança pública destacam no Brasil, e poderia chamar a atenção para o Luiz Eduardo Soares como um dos principais, é de que as polícias não fizeram essas reformas e são herdeiras de um modo de atuar que marcava as polícias no período da repressão, como órgãos auxiliares da repressão política, das Forças Armadas. O Átila Roque também fala disso, de uma substituição da antiga doutrina de segurança nacional pelos movimentos de lei e ordem do combate às drogas. E isso acaba fazendo com que o cidadão, caso pratique um crime e tenha a ele a pena aplicada, passe a ser, além de preso, um inimigo. Um inimigo se coloca num cenário de guerra, num fronte, onde abatê-lo faz parte do cardápio disponível para as forças de segurança. Uma mudança de mentalidade que acompanha ou que é concomitante a uma mudança institucional de procedimentos e meios de ação, é uma medida que a gente entende fundamental para efetivamente tornar a polícia democrática.

    Ponte – O MP é o principal órgão que fiscaliza e controla externamente as polícias. Como avalia essa ação em São Paulo nos últimos anos? Teve erro?
    Eduardo Valério –
    O exercício do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público no Brasil como um todo vem sendo ainda construído. O MP brasileiro ainda não conseguiu chegar num exato modelo de plena eficiência. Há tentativas e, a partir dessas tentativas, acertos ou erros. O MP de São Paulo anuncia hoje, pela sua administração superior, a criação de um grupo de atuação específica para controle externo da polícia e segurança pública como direito social, uma promotoria de tutela coletiva que acho que será um avanço significativo e, com isso, talvez corrigir alguns erros. O maior equívoco foi não ter conferido às promotorias e grupos constituídos nesse período para o controle externo as prerrogativas das tutelas coletivas. Ação civil pública, recomendação, inquérito civil, termos de ajustamento conduta… Esses são os instrumentos que permitem aos promotores a visão estrutural da polícia e não caso a caso. O grande equívoco foi confundir a responsabilização criminal individual de um policial que pratica um homicídio no exercício da função, ou de um policial civil por uma prática de corrupção, como sendo um controle externo da polícia. O controle tal qual previsto no artigo 129 da Constituição é a visão da polícia como um todo, seus modos de atuação, as suas formas de recrutamento, de formação dada aos policiais, os modos de organização das operações, os meios de controle do exercício da atividade policial.

    Ponte – Então o senhor está dizendo que foi um equívoco focar nos erros individuais e não em políticas públicas…
    Eduardo Valério –
    O erro da instituição foi achar que processando maus policiais estava fazendo controle externo da polícia. Esse acho que foi o grande equívoco e não ter compreendido, até agora, que a atividade pressupõe uma visão estrutural da polícia.

    Ponte – Em determinada parte do documento, o senhor cita os Crimes de Maio, série de assassinatos cometidos no revide do Estado aos ataques do PCC em 2006, assim como a ação civil pública que protocolou especificamente sobre o tema. Qual avaliação faz da sua atuação específica naquela época? Mudaria algo que fez?
    Eduardo Valério –
    Nos Crimes de Maio, em maio de 2006, a gente não sabia exatamente o que estava acontecendo. Nessa ação [proposta em abril deste ano e divulgada em detalhes pela Ponte], eu aproveito e puxo uma nota de rodapé pedindo desculpas por ser um dos que assinou na época, como promotor criminal atuando na Barra Funda [onde fica um dos fóruns de SP], um documento de apoio, solidariedade à polícia. É preciso lembrar que em 2006 não havia a agilidade da informação que há hoje, não havia WhatsApp, não havia Facebook, Instagram. Os celulares eram os tijolões que serviam apenas para fazer ligação, o telefone sem fio. Portanto, as informações não chegavam com a rapidez, agilidade e volume com que hoje chegam. As coisas hoje acontecem em tempo real. Na época, as informações que tínhamos não davam conta da tragédia que estava acontecendo. Acabei assinando aquele documento, me arrependo disso porque tenho hoje visão do que aconteceu na época, o que não sabia. Hoje, a gente fez essa ação civil pública contra o Estado no sentido de buscar não só indenização ou a possibilidade de indenização individual, mas também indenizações coletivas difusas por dano social, imaginando que as forças policiais agindo daquele modo provocam um prejuízo que vai até além dos próprios familiares diretamente envolvidos, mas a sociedade como um todo perde quando se tem forças policiais atuando de forma ilegal e inconstitucional. Pedimos, também com base na Justiça de transição, medidas de reparação que não são de caráter pecuniário, como pedido formal de desculpas por parte do governo, a perenização da versão das vítimas por meio de vídeos e gravações que estejam acessíveis em mídias eletrônicas do governo, atendimento psicológico e médico em favor dos sobreviventes e familiares. Sabe-se que um dos mais importantes movimentos populares do Brasil surge a partir daí, com as Mães de Maio. Que elas possam ser minimamente acolhidas em seus pleitos de justiça a partir dessa decisão.

    Ponte – Por sinal, recentemente o movimento lançou um novo livro e a Debora Maria, uma das fundadoras, chamou o senhor para discursar. Como foi esse momento?
    Eduardo Valério –
    Uma surpresa, eu não esperava. Ela me chamou, eu tive que falar de improviso alguma coisa, fiz uma homenagem àquelas mães e dizia da minha dificuldade, que é real, pelo meu espaço de fala e falar para mães… Eu não participo dessa dor delas diretamente, pelo contrário, eu estava do outro lado. Eu era um promotor criminal nessa época. São mães de pessoas oriundas de classes sociais sofridas, excluídas, e eu não sou nada disso. Sou um homem, branco, heterossexual, uma condição econômica boa, titular de um cargo público no sistema de Justiça. Então isso gera uma dificuldade de me aproximar de forma empática do sofrimento dessas pessoas. Tentei dizer isso ali, com muita dificuldade pela emoção do momento, pela surpresa de ter sido chamado praticamente em uma homenagem, mas, ao mesmo tempo, demonstrar a sinceridade e honestidade de fazer o melhor possível. Eu e o Lucas Bergamini, nosso analista jurídico e assessor da promotoria, e que foi um dos artífices dessas ações em que damos todo o arcabouço, a estrutura, mas quem recheava e fazia as primeiras versões era ele. Nós fizemos o melhor que a gente podia, nos dedicamos a essas ações com muito afinco, foram meses de trabalho. Não é uma ação que você começa a escrever em um dia e acaba no outro, até porque outros processos vão chegando. Tentei expressar isso a elas. Não estava em um espaço de fala que pudesse aproximar de modo empático, mas era solidário dentro do que hoje me cabe como promotor de direitos humanos e titular dessa ação penal de expressar essa possibilidade de reparação.

    Ponte – Dois projetos na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) tentam acabar com a Ouvidoria da Polícia e o Condepe. Como avalia essas ações?
    Eduardo Valério –
    São dois exemplos, e acrescento o terceiro que é a extinção do Mecanismo de Combate à Tortura, que mostram que o momento político é na retração nos instrumentos de controle democrático. Entendemos que a administração pública como um todo precisa de controle, mas muito especialmente os órgão que estão legitimados a restringir direitos da população. Estamos falando de polícia, que é o órgão que por excelência está autorizado a exercer o monopólio exclusivo da força e violência que o Estado tem, ao lado das forças armadas, mas em outro lado de competência. Se as forças policiais têm essa prerrogativa, elas precisam ter um estrito controle tanto externo, por parte do Ministério Público, como institucional, por parte de mecanismos como a Ouvidoria, que em São Paulo tem uma história de vanguarda, de inovação. Foi criada exatamente no final da ditadura militar, quando se reconstruía a democracia no Brasil, no governo Mário Covas.

    Ponte – Por que se criou a Ouvidoria?
    Eduardo Valério –
    Exatamente para que houvesse um canal de controle institucional e popular, por meio de uma instituição de Estado, mas constituída por um representante da sociedade civil e eleita por um conselho de direitos humanos, cujo controle majoritário é da sociedade. Tudo para fazer o controle daquela polícia que se pretendia que migrasse de agente de auxílio da repressão para uma polícia democrática e garantidora de direitos. É muito sintomático que exatamente nesse momento de retrocesso e de eliminação de direitos se tente excluir a Ouvidoria e se tente esvaziar o Conselho Estadual de Direitos Humanos. O Condepe tem uma conformação muito particular em São Paulo, foi criado até antes, no governo Fleury, como um conselho cuja composição não só é de maioria da sociedade civil, como a presidência por determinação legal é apenas de representantes da sociedade civil, diferentemente do que acontece em outros conselhos de Estado, em que geralmente há um rodízio.

    Ponte – Sobre o enxugamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, anunciado pelo governo federal, qual o impacto dessa decisão?
    Eduardo Valério –
    Essas pessoas [os peritos do MNPCT] vinham denunciando as péssimas condições de encarceramento no Brasil e vários estados, inclusive Manaus, antecipando a mortandade que aconteceu em duas ocasiões em dois anos em um presídio concedido à iniciativa privada, diga-se, e acabou que isso, imagino, tenha incomodado quem se interessa na manutenção dessa ordem de coisas. A eliminação desse mecanismo é uma violação de direito internacional. O Brasil entra na contramão das recomendações internacionais e do próprio compromisso que o país assume quando se torna signatário da Convenção Internacional de Enfrentamento e Combate à Tortura, e isso já levou que isso fosse levado ao conhecimento da CIDH e também em uma representação da Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão à procuradora-geral da república nesse sentido. O que a gente vê de uma maneira geral é uma tendência de enfraquecimento dos instrumentos de controle institucional e social do poder público, sobretudo de privação de liberdade e exercício da violência legal.

    Ponte – E por que até o nome “direitos humanos” é tão mal visto no Brasil?
    Eduardo Valério –
    Isso é uma construção que vem da ditadura no sentido de estigmatizar os movimentos que exatamente lutavam contra a ditadura militar e pela democratização. Digamos que o discurso, a retórica ou a gramática dos direitos humanos, surge nos anos 1960 e 1970 sobretudo na defesa dos presos políticos e, por isso, acabou criando uma visão, politizando os direitos humanos dentro de uma ótica puramente de política pequena, com ‘p’ minúsculo, e não de alguma coisa que diz respeito ao gênero humano como um todo. Quando a gente vê alguém recriminando ou estigmatizando os direitos humanos, vemos a pessoa abrindo mão de um direito fundamental dela para dizer aquilo, a começar do direito de expressar que a permite dizer isso. O que te dá o direito de dizer que direitos humanos são coisa de bandido? Muita gente morreu, foi queimada, torturada e guilhotinada para que hoje você pudesse ter direito de expressão para dizer essas bobagens. O que falta é o mínimo, básico, essencial de educação em direitos humanos. O que temos é um nível indigente intelectual na população, que não faz a menor ideia do que são os direitos humanos e o que isso significou em termos de conquista da humanidade. E aí pouco importa se é direita ou esquerda, pouco importa se é PT ou PSL. O que importa é que uma conquista da civilização é colocada em risco por conta desses joguinhos medíocres da pequena política.

    Ponte – Qual sua visão sobre o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro? Você apoia?
    Eduardo Valério –
    Eu não consigo ter uma visão do todo, porque eu estou afastado da atividade criminal propriamente dita há alguns anos. Pode ser que ali, como o pacote é muito grande, haja alguma coisa ou outra de perdimento de bens, procedimento de júri, que até haja um avanço. O que eu identifico ali como preocupante: a legítima defesa, que é uma licença para matar ao polícia, isso é um absurdo insuportável. Não se pode presumir legítima defesa. O excludente de ilicitude é sempre uma exceção, tem que ser aferida caso a caso e dentro daqueles requisitos que vêm do iluminismo. A partir dali, mudou o direito penal para que se tenha uma visão humanista do direito e a legítima defesa como licença para matar, morte legítima, precisa estar aferida caso a caso e ponderada. Outro ponto muito grave que destaco é a pena da resistência qualificada que coloca, por exemplo, no movimento social de ocupação de um imóvel, no caso de uma reintegração de posse, se alguém jogar um pedaço de madeira contra um policial, dizer que houve grave ameaça e a pena ser quase a de um latrocínio. É uma desproporção absoluta. Não gosto da figura do “cagueta do bem”, aquela história de remunerar quem ficar dedando os outros. Isso estimula competição de amor ou ódio, viola o princípio da solidariedade e pode levar a falsas denúncias. Se não tiver um instrumental bem aferido para apurar as denúncias, pode facilmente criar um mecanismo stalinista de perseguição e beneficiando alguns poucos mais espertos que saibam manejá-lo. E acho absurdo, além de ser um horror de técnica legislativa, mas mesmo do ponto político e histórico, incluir no texto de lei nomes de facções criminosas, dando-lhes reconhecimento jurídico que eles nunca conseguiram. Eles cresceram e crescem em várias áreas na criminalidade e aí vem um ministro da Justiça e sugere que eles passem a existir juridicamente, legalmente, em texto de lei.

    Ponte – O senhor falou sobre privatização de presídios, citando o massacre de Manaus. Aqui em São Paulo se tem um projeto de ceder quatro unidades para a iniciativa privada e com modelo similar ao de onde ocorreu o massacre. Como analisa essa possibilidade?
    Eduardo Valério –
    Eu vejo com grande preocupação. Há notícias de que são quatro inicialmente, mas tem uma entrevista dele [governador João Doria] dizendo que vão todos. Primeiro lugar, a forma de fazer. Não pode ser feita exclusivamente no âmbito do poder executivo como se fosse uma decisão de gestão. Isso necessariamente teria que ser em forma de projeto de lei, passando pela Assembleia Legislativa, e, portanto, abrindo um debate. Agora, fora isso, os estudiosos demonstram é que, em primeiro lugar, é uma falácia dizer que há redução de custos. As experiências mostram tanto no Amazonas como Rio Grande do Norte e Minas Gerais que o custo do preso é muito maior. E o grande problema, que é uma questão principiológica, é de transformar a privação de liberdade em mercadoria. Aí não há nenhuma garantia de que não haverá um descontrole ainda maior no encarceramento para se garantir o lucro, sobretudo em tempos que tudo vira mercadoria e que o lucro e a avidez não têm controle.

    Ponte – Se a situação agora é essa, imagina agora sem o Mecanismo e com os presídios privatizados…
    Eduardo Valério –
    Nas tratativas para criação do Mecanismo Estadual de Combate à Tortura, uma das questões que a gente cogitava era essa: se era importante antes, agora com a privatização é ainda mais. Afinal, o estado estará, de certa forma, saindo do presídio e deixando para a iniciativa privada. Quem é que vai dizer como são as condições do encarceramento? Estamos em um caminho célere para a Idade Média.

    Ponte – As reportagens do The Intercept Brasil envolvendo a Lava Jato evidenciaram uma relação próxima de procurador e juiz, no caso de Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e Segurança Pública. Medidas as proporções com outros casos, o senhor considera ser normal esse tipo de relação? Elas são comuns no Brasil?
    Eduardo Valério –
    Aí eu trago minha experiência de 33 anos e meio de Ministério Público, uma boa parte no interior [do estado de São Paulo], outra boa parte aqui em varas de São Paulo, portanto em contato próximo com juízes. Te diria o seguinte: sim, é comum essa proximidade, sobretudo no interior, onde o amigo do promotor é o juiz e o amigo do juiz é o promotor. São pessoas de fora que chegam em uma cidade estranha, que até se têm dificuldade de montar laços de amizade, porque têm que manter a isenção em muitos casos. É muito natural que juízes e promotores sejam amigos. O que não é natural e não é normal? É combinar táticas de atuação, como a gente viu nessa gravação. Isso até tem gente dizendo que é comum. Não, não é comum. Quando acontece é uma aberração. De dizer “faça essa prova que eu vou condenar aqui”, “ouve essa testemunha porque ela é boa, eu conheço”. Isso eu nunca vi, extrapola completamente. Até se conversa de casos, de “viu aquela audiência? Interessante, a testemunha disse aquilo”. E o juiz até pode falar “não, eu vou condenar”. Isso é normal, faz parte da conversa. Agora, um influenciar o outro e combinar, não. Isso de jeito nenhum acontece. A fronteira é sempre muito clara, ela está posta na mesa da pizza do sábado à noite. Vamos comer pizza juntos? Vamos, até se fala dos processos e audiências, mas não tem nada de acerto, não. Se houve por aí, comigo esses anos em que eu sempre tive contato próximo com juízes, muitos dos quais eu sou amigo até hoje, nunca teve esse tipo de coisa.

    Ponte – Ainda no âmbito nacional, houve a criminalização da LGBTfobia no STF. Considera que é uma decisão que afeta diretamente as causas do preconceito ou pode criar mais problemas do que soluções?
    Eduardo Valério –
    Pois é, essa questão sua é essencial. É claro que eu fico muito feliz de ver a criminalização da homofobia. Embora favorável ao direito penal mínimo, eu não sou abolicionista. Acho que o direito penal é um instrumento importante na defesa de direitos humanos vitais, na ideia do direito penal mínimo é importante a tutela penal dos mais vulneráveis, das minorias. Sou totalmente favorável à criminalização da homofobia e, nesse sentido, a decisão do Supremo é um avanço. Mas, por outro lado, abre uma porta tão perigosa… Porque criar tipo penal por interpretação extensiva em decisão judicial… Então amanhã fala-se que o MST é um movimento terrorista. É uma interpretação. Eu preferia que fosse pela aprovação do velho e famoso PL 122 e aí, pelas vias ortodoxas, ser discutido no parlamento, ter projeto de lei transformando lei penal. Essa também é uma garantia que a gente herda do iluminismo e não deveria abrir mão dela, mas as circunstâncias são muito específicas. Trata-se de uma tutela penal urgentíssima, que já se adia há muito tempo, o Brasil é o país do mundo que mais se mata homossexuais e transexuais, portanto é necessária essa lei penal, e a maneira com que se encontrou nesse momento de tensão política foi pelo Supremo.

    Ponte – Durante o lançamento da Plataforma Justa, um tema bastante falado foi que o sistema de Justiça é basicamente composto por pessoas brancas, de classe social abastada e heteronormativa. O senhor considera que isso afeta nas decisões?
    Eduardo Valério –
    Acho que afeta, mas falta um componente. Veja você pode ser um homem branco, heteronormativo, oriundo de uma classe social privilegiada, ter acesso a todas as possibilidades de estudo, preparação, estudado no exterior e hoje estar investido do cargo de juiz, mas não se isolar do mundo. Esse é o ponto fundamental. A palavra é essa no sentido da branquitude, o privilégio que, na verdade, deveria nos obrigar a sair exatamente da bolha e entender o mundo que está aí do lado. Eu brinco que basta ir à cozinha da sua casa, ali está a empregada doméstica que já está em outro mundo. É uma viagem interplanetária você sair da sua sala e entrar na sua cozinha, cê entra em outro mundo. Essa disposição que faz a diferença mais do que todo esse seu passado das suas origens. Respondendo a sua pergunta, o que eu acho que reflete é o isolamento, a soberba, a arrogância.

    Ponte – Falta essa empatia?
    Eduardo Valério –
    Essa empatia e esse desejo, esse propósito de entender que existe outro mundo, é sair da bolha. O problema não é que somos brancos e viemos de classe média, classe média alta alguns, ou somos heterossexuais. O problema é quando nós não nos dispomos a entender o mundo dos jovens, negros, pobres, homossexuais, de periferia, das mulheres trans, das mães de periferias que não sabem se os filhos vão voltar, dos jovens que são enquadrados pela PM dia sim dia não com truculência, arrogância, desrespeito… É abrir-se à realidade do outro. Esse gesto de empatia e humildade acho que é o ponto fundamental. O pior não é sermos brancos, etc, etc, é sermos arrogantes. É isso que afeta a capacidade de atuar do Ministério Público e do poder Judiciário.

    Ponte – Outro ponto comentado foi que o sistema de justiça tem um gasto elevado. O senhor concorda que se gasta muito com Justiça?
    Eduardo Valério –
    Eu não ficaria na coluna dos gastos, ficaria na coluna dos resultados. Acho que teríamos que aferir esse gasto não comparado com os outros orçamentos. Como alguém perguntou no encontro: como pode comparar orçamento de poder com orçamento de uma política pública? Metodologicamente, talvez tenha alguma questão. O que temos que avaliar é: a partir desse gasto monumental, o que se produz? Qual é o resultado em termos de impacto social, de aprimoramento das instituições democráticas, de avanço no padrão civilizatório, que o poder Judiciário e o Ministério Público trazem, digamos, honrando esse gasto público? Esse é o ponto. Eu tiraria o olhar, o foco, da coluna de quanto se gasta e poria no resultado.

    Ponte – Para o senhor, qual é o resultado?
    Eduardo Valério –
    É deficitário. Precisaremos certamente melhorar muito os nossos modos de agir, de atuar, não só em termos de rapidez, mas sobretudo eficiência e sensibilidade.

    Ponte – Um exemplo é a parte tecnológica…
    Eduardo Valério –
    É um problema sério as pessoas acharem que a tecnologia é uma finalidade. Ela é meramente uma ferramenta, uma chave de fenda melhorada. O que importa é o produto final, que é um produto de ordem intelectual dos manejadores ou operadores do Direito. Um governo de sensibilização das causas sociais, das angústias, dos sofrimentos da população mais excluída, eu acho que é isso que falta. É preciso que os profissionais do Direito conheçam além do Direito, porque o simples manejo de leis, como um eletricista maneja fios, leva a decisões insensíveis e sem compromisso com o resultado, que é o impacto na vida das pessoas. Essa é a questão fundamental e essa é difícil de ser aferida por sistemas de pesquisa estatística.

    Ponte – Fosse assim criaríamos softwares promotores de justiça e estaria tudo resolvido…
    Eduardo Valério –
    Vou te dar um exemplo concreto: as condenações sobretudo no caso de crimes envolvendo drogas, especificamente tráfico, baseadas exclusivamente em depoimentos policiais. Isso é um dado concreto, efetivo. Qual questionamento se tem disso nos termos de impacto de justiça? Esse é o ponto. Aí pouco importa se a denúncia é feita em um computador de última geração com um programa hiper, super atualizado ou numa velha máquina de escrever Remington 1909. Não importa isso, importa o que está sendo escrito ali e o impacto disso na vida das pessoas.

    Ponte – Gostaria de saber como o senhor avalia essa história da internação sem consentimento, autorizada na nova política nacional de drogas?
    Eduardo Valério –
    A lei municipal diz que não pode. A lei federal não muda a internação compulsória, muda a internação involuntária. É diferente. A compulsória é por ordem judicial e isso não muda, continua prevalecendo a lei de 2001 antimanicomial. O que a lei federal mudou é a involuntária, aquela que só poderia ser feita contra a vontade do paciente a pedido de um familiar e que agora pode ser feita por qualquer profissional de saúde e serviço público. Isso é muito grave, porque abre a qualquer funcionário assinar, como se fosse uma linha de produção.

    Ponte – Um jeitinho…
    Eduardo Valério –
    Mais ou menos isso. A política municipal de drogas é um grande avanço civilizatório. Agora a gente não sabe como eles vão compatibilizar isso na prática. Estão anunciando na Prefeitura uma nova fase do projeto Redenção, a fase 2. Não entendemos ainda como isso vai ser operacionalizado, mas a grande pergunta para se responder é: como aplicar a lei municipal ao lado desta lei federal nova que não se compatibilizam?

    Ponte – Quando deixar a promotoria, o que quer deixar de legado?
    Eduardo Valério –
    O legado, meu caro, acho que é o de fazer o Ministério Público dialogar fora dessa instituição, conversando com movimentos sociais, com a população, com professores, parlamentares, governistas. Esse é o maior legado, exatamente aquilo que falávamos de sair da bolha, de sair da arrogância de achar que é profissional do Direito e sabe tudo. E, portanto, ouvir, aprender, tentar entender a realidade dos outros. Se isso ficar no MP já é ótimo.

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