Janeiro a junho de 2021 contabilizaram 330 mortes pela corporação após recorde de violência no ano passado
Quase trinta perfurações a bala mataram os jovens negros Felipe Barbosa da Silva, 23, e Vinícius Alves Procópio, 19, em 9 junho, que haviam colidido o carro que dirigiam na zona sul da capital paulista. Parte dos disparos foi gravado por uma testemunha que passava e que pode contabilizar 12 deles em sete segundos. O sargento André Chaves da Silva e o soldado Danilton Silveira da Silva, da Força Tática do 1º Batalhão da PM Metropolitano, foram acusados de executar a dupla e plantar armas para forjar confronto, segundo a denúncia do Ministério Público, aceita pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. As defesas alegam inocência e afirmam que a prisão deles é desnecessária.
Felipe e Vinícius são duas das 28 pessoas mortas em ações da Polícia Militar paulista em junho de 2021. No primeiro semestre do ano, a corporação matou 330, quase duas por dia. Os números representam uma queda de quase 34% ao compararmos janeiro a junho do ano passado, após um recorde histórico de óbitos em plena pandemia. Esse é o menor índice desde 2014, quando os primeiros seis meses daquele ano contabilizam 318 mortes.
No entanto, apesar da redução, Francine Ribeiro, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança, pontua que as taxas ainda são altas. “Está na média dos últimos anos e supera boa parte dos números dos anos 2000”, aponta. “Ainda temos um longo caminho para reduzir essa violência”, prossegue. A Ponte monitora todos os meses as mortes decorrentes de intervenção policial, especialmente da Polícia Militar, que é a corporação responsável pela maioria dessas ocorrências. Essa queda nos índices vem acontecendo pelo menos desde maio de 2020, após um abril que é considerado o mais violento da história.
O governador João Doria (PSDB), ainda em campanha em 2018, dizia que a Polícia Militar iria “atirar para matar” e, já no cargo, afirmou que “bandido não vai para delegacia, nem para a prisão, vai para o cemitério“. O discurso mudou, na avaliação de especialistas, quando ocorreu o massacre de Paraisópolis, em que nove jovens foram mortos durante ação de dispersão da PM na comunidade da zona sul da cidade, em dezembro de 2019. No mês passado, o Ministério Público denunciou 12 policiais por homicídio qualificado, ao entender que assumiram o risco de provocar as mortes ao terem agido de forma truculenta no local. A denúncia foi aceita pela Justiça.
Enquanto governador, Doria seguiu uma linha dura na segurança em 2019. Prometeu os “melhores advogados” para defender policiais que matassem em serviço, nomeou um PM que atuou no massacre do Carandiru para comandar a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) e vetou a criação de um órgão para o combate à tortura. Ainda naquele ano, impôs um decreto para limitar o direito à manifestação e viu sua polícia aumentar e letalidade policial sem criticar os números. Também não elegeu a redução da letalidade policial como uma prioridade nos índices e chegou a elogiou publicamente policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da corporação paulista, que matou 11 na cidade de Guararema em setembro de 2019, homenageando os PMs antes de qualquer investigação. Na época, a Ouvidoria das Polícias fez um relatório em que indicava que quatro dos 11 mortos não reagiram à ação.
Em 11 meses de mandato, a gestão aumentou de 5 para 9 o número de Baeps (Batallhões de Ações Especiais de Polícia) presentes no estado, fazendo o número de municípios abrangidos por esses batalhões saltar de 117 para 382, como mostra reportagem da Ponte publicada em dezembro de 2019.
Além disso, há também um decreto de Doria atrelada a uma interpretação do pacote anticrime que inviabiliza a investigações de mortes cometidas por PMs ao determinar que os policiais sejam ouvidos apenas na presença de um advogado. Segundo o UOL, ao menos 300 inquéritos ficaram parados por isso.
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O contexto internacional também favoreceu a mudança de postura. Apesar de os movimentos sociais no Brasil sempre terem realizado protestos e reivindicações contra a violência policial, o tema tomou repercussão e visibilidade maiores quando do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio de 2020, avalia Francine Ribeiro. “Acredito que o maior controle da ação policial tenha influência nisso e essa postura é reflexo da mobilização da sociedade, cito o caso de George Floyd e como repercutiu aqui, a polícia passou a prestar mais atenção nessa indignação e no excesso praticados por seus agentes em todo Estado”, analisa.
Na reportagem sobre 15º Anúario Brasileiro de Segurança Pública, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o pesquisador e cientista em Humanidades pela UFABC (Universidade Federal do ABC) Dennis Pacheco explicou que um dos indicadores usados para medir o uso excessivo da força é comparar homicídios dolosos e mortes praticadas pela polícia. Segundo estudos de Ignacio Cano, o ideal é a proporção de 10%, e Paul Chevigny sugere que índice maior de 7% é considerado abusivo. Em junho deste ano, as mortes pela PM corresponderam a 12% dos homicídios.
O governador anunciou, há praticamente um ano, o retreinamento da corporação. O comando da PM proibiu o golpe de enforcamento, conhecido como mata-leão, em agosto de 2020, apesar de vídeos denunciado a prática seguirem aparecendo depois da norma. Especialistas destacaram, na ocasião, que sem discutir racismo, a proibição não teria a expectativa do efeito que pretenderia causar, que seria a redução do uso da força.
Durante este semestre, a advogada e socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, tem apontado em reportagens da Ponte que a PM também criou uma comissão interna para analisar os casos. “Criou-se uma comissão de mitigação de ações indesejadas, a cada caso de confronto é feita uma discussão interna na PM para entender como foi, o que estava por trás. Com essa medida, cada caso vai ser estudado e analisado, o que mostra para a tropa que não é banal o confronto, a troca de tiros, é preciso discuti-lo e a polícia está olhando para isso”, disse em abril.
A implementação das câmeras corporais nas fardas, as chamadas body cams, também tem sido atrelada a essa redução após ao menos 18 batalhões que estão realizando a experiência compararem os meses de maio e junho, segundo reportagem da Folha de S.Paulo. À Ponte, Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutora em Administração Pública cuja tese trata das motivações que levam PMs a matarem, reiterou que esse cenário compreende mais uma mudança de postura do governador, que tenta se descolar do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e do comando da corporação do que a implementação isolada desses dispositivos. “Se a ordem que vem de cima é para reduzir ao máximo, que vão punir quem está matando, eles realmente reduzem, e reduzem porque a maioria das mortes são desnecessárias”, analisa.
O que diz a polícia
A Ponte encaminhou as seguintes questões às assessorias da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar. A In Press, assessoria terceirizada da SSP, encaminhou a seguinte nota*:
O compromisso das forças de segurança no Estado de São Paulo é com a vida, razão pela qual medidas para a redução de mortes são permanentemente estudadas e implementadas pela SSP. A quantidade de pessoas mortas em confronto com policiais em serviço vem caindo de maneira consistente no Estado. Junho de 2021 completou 13 meses de queda consecutiva neste índice. A redução nos seis primeiros meses deste ano foi de 36,88%, nas polícias Civil e Militar, se comparado a igual período do ano passado.
Todas as ocorrências de morte decorrente de intervenção policial são analisadas pelas instituições policiais, rigorosamente investigadas e comunicadas ao Ministério Público. Também são implementadas medidas visando a aprimorar os protocolos e procedimentos operacionais e administrativos. Além do trabalho de gestão interna, as forças de segurança investiram em meios tecnológicos para mitigar as ocorrências com resultado morte, como a implementação das câmeras corporais nos uniformes dos policiais militares e o uso de equipamentos de menor potencial ofensivo.
*Reportagem atualizada às 19h11, de 9/8/2021.
Correções
*Reportagem atualizada às 19h11, de 9/8/2021.