Maria Aparecida e a bala (duas vezes) perdida

Uma bala perdida da PM matou Cicinha, única filha de Maria Aparecida, em 2007, e depois sumiu de dentro da delegacia, salvando os culpados de qualquer punição. ‘Quem mora na favela não tem valor ‘, diz Maria

Ilustração: Junião

Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016

Faz tantos anos. As pessoas perguntam se Maria Aparecida Lima dos Santos ainda se lembra da filha. Se ainda chora.

— Claro que lembro, claro que choro. Minha filha saiu de dentro de mim. Minha filha era tudo para mim. Tudo. Por isso eu falo, filho: saudade. — Batendo de leve com a mão espalmada no peito, repete: — Saudade demais.

Sentada num sofá da casinha de sala e dois quartos em que vive, na Vila Dalva, bairro pobre na zona leste da cidade de São Paulo, Aparecida prossegue:

— Aceitei falar com você hoje, filho, mas não gosto de falar sobre o que aconteceu com minha princesa. Ficar mexendo assim… dói muito.

Em alguns momentos, esquece nomes e datas.

— Minha cabecinha, filho, eu esqueço de tudo… A cabeça não funcionou mais como antes desde que Cicinha morreu.

Embora não goste de falar sobre a filha, Aparecida pensa nela o tempo todo: fotos e objetos de Maria Cícera Santos Portela estão por toda a parte, ao lado das caixas da “remediaiada” psiquiátrica que ela passou a tomar após a morte da menina e da imagem de Nossa Senhora Aparecida: “a nossa mãe”, explica, que nos ajuda a “seguir em frente”.

Ela nos chama de “filho” durante toda a conversa, a mim e ao repórter fotográfico Daniel Arroyo, numa tarde de agosto de 2016. Aparecida é toda mãe. Desde que a filha nasceu, em 11 de fevereiro de 1983, na cidade de Girau do Ponciano, Alagoas, terra natal de Aparecida, a maternidade a preencheu. A ponto de ela não desejar ser outra coisa na vida. Tudo o que queria era ser mãe de Cícera, a sua princesa, o dia todo, todos os dias.

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Quando se separou do marido, disse para a menina, então com cinco anos: “Mamãe vai cuidar sozinha de você, nunca vai te dar um padrasto”. Cumpriu a promessa, mesmo com Cícera pedindo para ela se casar de novo porque queria ganhar um irmão.

— Eu dizia: “mamãe não vai te dar irmãozinho. É só você, filha”. E ela se foi, e sem me deixar um netinho. Foi só ela, mesmo.


A molecada gostava de brincar Carnaval na Favela São Remo. Localizada no Butantã, distante 19 quilômetros do Sambódromo do Anhembi, a comunidade não tinha desfiles nem blocos carnavalescos. O que rolava ali era um Carnaval à moda antiga, em que grupos de moradores, a maioria adolescentes, brincavam de atirar ovos uns nos outros, uma rua contra a outra, seguindo a velha tradição melequenta dos carnavais de rua que remonta aos “entrudos” do Brasil colonial.

Ninguém se lembra de quando a tradição da guerra de ovos começou, mas os moradores sabem dizer com precisão o dia e a hora em que terminou: 20 de fevereiro de 2007, pouco depois das 16h. Foi quando, pela primeira vez, a Polícia Militar de São Paulo chegou para interromper a festa.

Naquele dia, o sistema de rádio do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) havia repassado uma denúncia para as viaturas em patrulhamento pelo bairro: bandidos estariam executando um arrastão na avenida São Remo. Duas viaturas do 16º Batalhão da PM foram ao local. Assim que chegaram, perceberam o engano: era uma brincadeira de Carnaval, não um crime. Mesmo assim, os policiais atiraram para cima.

Um dos tiros atingiu a cabeça de Cícera.

Nascida em 28 de fevereiro de 1965, Aparecida saiu de Girau de Ponciano e veio para São Paulo em 1986, com o marido e a filha. A separação veio pouco tempo depois. O pai de Cícera era homem bom, trabalhador, mas “meio destrambelhado”. Às vezes bebia demais e sumia por dias. “Foi a bebida que estragou nosso casamento.”

Separada, Aparecida cuidou da filha sozinha, sem qualquer ajuda financeira do pai, trabalhando como cozinheira em diversos empregos. Um deles foi no 16º Batalhão da Polícia Militar, na zona oeste.

— Devo ter servido comida para o homem que matou minha filha – hoje ela lamenta.

A mãe gosta de dizer que ensinou à filha o “caminho do bem” e que ela aprendeu. Cicinha tornou-se uma jovem de amizade fácil, sorridente, estudiosa e trabalhadeira. Era “danadinha para namorar” e planejava cursar Enfermagem. Mesmo depois dos 20 anos, continuava a sair com a mãe para todos os lugares e a dormir na mesma cama que ela. “Minha princesa era uma filhona, uma companheira”, diz Aparecida.

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Cícera tinha o sonho de, um dia, comprar uma casa para a mãe e outra para o pai.

— Ela sonhava em me tirar da favela e me colocar num ambiente mais gostoso. Ah, filho, ela dizia que queria me retribuir dando para mim o dobro do que eu tinha dado para ela. As coisas eram bem diferentes naquela época — resume Aparecida a época em que era feliz.

Quando a polícia entrou na Favela São Remo, naquele Carnaval de 2007, Cícera assistia à guerra de ovos na sacada de uma vizinha, a garçonete J.A.S. (ela pediu para não ser identificada neste livro). Estavam no terceiro pavimento do sobrado, ao lado de uma tia de J. e duas crianças, primas dela. Ali de cima, viram a multidão correr e escutaram os disparos.

“Eu gritei: ‘gente, sai que é tiro’. Fomos entrando em casa, uma puxando a outra. Quando minha tia puxou a Cicinha, ela já caiu no chão, sangrando por todo lado”, narra J.

— Para mim estou vendo tudo o que aconteceu — murmura Aparecida ao recordar aquela tarde.

Quando a polícia atirou, ela estava em casa, a uma parede e meia do sobrado onde estava Cícera. No momento em que escutou os disparos, sentiu que algo havia acontecido com sua filha. Ao sair de casa, a sensação virou certeza. Na rua, viu o cunhado chorando e a irmã gritar desesperada. Próximo a eles, viu um policial com arma na mão, o soldado José Alvaro Pereira da Silva. “Por que você atirou na minha filha?”, perguntou.

J. conta que, do alto da sacada, gritou “pelo amor de Deus, socorre, socorre, tem uma baleada aqui” até quase se jogar do sobrado. Mas os PMs ficaram ali, parados, olhando para cima. Foi preciso que um vizinho descesse os dois lances da escada em caracol sob a sacada, com Cicinha nos braços, para depois levá-la em seu próprio carro ao pronto-socorro do Hospital Universitário. Aparecida viu a filha entrar no automóvel, coberta de sangue, e perguntou: “por que esse tiro não foi para a mamãe?”.

A jovem chegou a ser transferida para o Hospital das Clínicas, mas morreu em seguida. Nove dias antes, havia completado 24 anos.


Baiano de Santo Dias, nascido em 1968, o soldado José Álvaro Pereira da Silva, casado e pai de duas filhas, contabilizava 19 anos de farda, sempre no mesmo batalhão, com uma carreira livre de acusações de crimes ou infrações disciplinares — até a morte de Cícera.

Apontado por testemunhas como o autor do tiro que matou a jovem, Pereira chegou a ser detido na noite do crime, mas foi liberado após pagar fiança de R$ 300. Respondeu a todo o processo em liberdade, trabalhando em funções administrativas no 16º Batalhão enquanto aguardava o dia do seu julgamento. O soldado admitiu ter atirado para cima duas vezes durante a ocorrência, mas negou que os disparos pudessem ter atingido Cícera. Os outros policiais envolvidos na ação disseram que não atiraram.

Na tarde em que a filha de Aparecida foi baleada, havia duas viaturas na favela, com um total de quatro PMs. Pereira estava na segunda, que chegou em apoio à primeira viatura. Na sua versão, os policias foram cercados pelos favelados e atacados com paus, pedras e ovos. Disse aos investigadores do caso que “era o mais velho do grupo e tinha que tomar uma atitude”. Deu um tiro para cima, mas não teria sido ouvido, já que “era Carnaval”, e por isso resolveu atirar de novo, pois não podia deixar que os moradores “tomassem as armas e destruíssem as viaturas”. Também disse que tentou socorrer a vítima, mas teria sido impedido pela população.

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A investigação da Polícia Civil desmentiu parte da história do PM. Segundo a perícia, a viatura de Pereira apresentava apenas “manchas de gema e clara de ovos no capô e para-choque dianteiros”, sem sinal de paus e pedras. Por outro lado, a perícia encontrou no local do crime duas cápsulas deflagradas de 9 mm, o que poderia indicar que outras pessoas, além do soldado, teriam atirado — a arma de Pereira era uma pistola 40. O conflito de versões poderia ser facilmente resolvido com o exame da bala encontrada no corpo de Cícera, que seria feito pelo IC (Instituto de Criminalística). Por isso, as pessoas que acompanha vam o desenrolar do caso esperavam uma conclusão rápida — e justa.

Nessa altura, a comoção pela morte de Cícera havia ultrapassado a Favela São Remo e chegado à Cidade Universitária da USP (Universidade de São Paulo), onde a menina trabalhava, ao lado da mãe, numa lanchonete da Faculdade de Educação — Cícera no balcão, Aparecida na cozinha.

Funcionários e estudantes se mobilizaram em apoio à família, fizeram moções de repúdio, organizaram manifestações e confeccionaram mil camisetas estampadas com a foto de Cicinha.

— Toda essa mobilização ocorreu porque a Cícera era uma excelente pessoa, muito simpática, sempre de sorriso aberto. Todo mundo gostava dela — lembra o professor Claudemir Belintane, da Educação.

O julgamento ocorreu três anos após o crime, na 5ª Vara do Júri de São Paulo, no Fórum Criminal da Barra Funda, em 13 de outubro de 2010. Aparecida e os amigos de Cícera foram todos para lá. Pretendiam vestir as camisetas com o rosto de Cicinha no tribunal, mas foram impedidas pelo juiz Emanuel Brandão Filho. Foi a primeira decepção que tiveram no julgamento. Logo viriam outras, bem piores.

A principal esperança de Justiça para a morte de Cicinha repousava numa peça de metal com 10 centímetros: a bala extraída do crânio da jovem.

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Após disparadas, munições se transformam em confissões assinadas. É que, ao passar pelo cano da arma, o projétil é marcado com ranhuras que são únicas como impressões digitais. Por isso, o confronto balístico poderia comprovar se a bala que matou Cícera havia partido da arma de algum dos policiais envolvidos na ocorrência.

A prova, contudo, nunca chegou a ser analisada. Desapareceu, sem qualquer explicação. Sim, desapareceu.

Os documentos sobre o caso deixam claro onde a bala foi perdida. O laudo da necropsia, feito pelo IML (Instituto Médico Legal) Centro no mesmo dia da morte de Cícera, confirma que o projétil foi encontrado e removido. Do IML, a bala seguiu para o 93º Distrito Policial, no Jaguaré, que, segundo a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública, deveria ter “feito uma requisição de exame e encaminhado a prova para o IC (Instituto de Criminalística)”. A prova, contudo, não foi encaminhada ao IC.

Num ofício de 9 de fevereiro de 2009, a então delegada chefe do 93º DP, Nair Silva de Castro Andrade, reconhece que o projétil, “apesar de todas as diligências empreendidas, não foi localizado”. Isso mesmo: antes de ser periciada, a principal prova do crime havia desaparecido dentro da delegacia encarregada de guardá-la.

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A bala duas vezes perdida influenciou o julgamento de José Alvaro Pereira da Silva. Após 14 horas de sessão, numa decisão apertada, por quatro votos a dois, os jurados absolveram Pereira da acusação de homicídio doloso por dolo eventual — em que o réu, mesmo sem intenção, assume o risco de provocar mortes, como no caso de alguém que dispara contra uma multidão.

— Foi um caso de difícil solução. O confronto balístico poderia ter determinado se o tiro partiu da arma do soldado, mas a não localização do projétil deixou essa questão em aberto — comenta o promotor Idejalma Múcio, responsável pela acusação no plenário.

Segundo o promotor, também pesaram na decisão do júri as declarações de testemunhas afirmando que os PMs haviam atirado várias vezes durante a incursão na São Remo, o que, com o projétil desaparecido, tornava ainda mais difícil determinar de qual arma havia saído o disparo responsável pela morte.

— A pessoa que mora na favela não tem valor para nada. A polícia já chega atirando porque acha que, se é favelado, mexe com coisa errada — diz a mãe de Cícera.

O medo da favela foi bastante explorado pela defesa ao longo do julgamento. O advogado do réu, Paulo José Domingues, chegou a anexar aos autos dezenas de páginas com notícias de sites e jornais sobre crimes ocorridos na favela São Remo, para demonstrar que ali era um lugar perigoso, onde “os PMs podiam ser recebidos com tiros”. Aos jurados, Pereira disse que a favela, além de “pessoas do bem”, abrigava também “pessoas do mal”, que cometiam assaltos e arrastões nas proximidades da Cidade Universitária. E, como “era feriado”, as pessoas do mal “certamente faziam parte da aglomeração” que cercou as duas viaturas.

A linha de argumentação irritou amigos de Ciça que assistiram ao julgamento. O professor Belintane afirma que a defesa “retratou a favela como um lugar de bandidos” e abusou da “figura do soldado que defende o sono dos justos indo arriscar a vida numa área perigosa”. Para o professor, a decisão do júri foi “baseada no preconceito”. “Vimos um júri branco, de classe média, predominantemente masculino (seis dos sete jurados eram homens), julgando um caso que envolvia uma vítima mulher, de origem nordestina e moradora de favela”, comentou.

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O advogado de Pereira nega que tenha apelado para o preconceito ao enfatizar a violência da favela em suas alegações.

— Quis demonstrar que a polícia estava numa área em que outros PMs já haviam perdido a vida. Não agi com qualquer preconceito — afirmou Domingues.

Ele também afirma que o sumiço da bala que matou Cícera não teria facilitado a defesa do seu cliente.

— O sumiço desse projétil foi prejudicial tanto para a acusação quanto para a defesa. O encontro daquele projétil iria demonstrar que aquele material bélico não foi expelido da arma utilizada pelo acusado e ele não teria nem sido levado a julgamento — disse o advogado.

Segundo seu defensor, Pereira agiu corretamente ao atirar durante a operação na favela, pois precisava “controlar aquela massa que havia se transformado numa turba”. Sobre as testemunhas que apontaram Pereira como o assassino, Domingues afirmou que “parentes, amigos e vizinhos têm um envolvimento emocional superior à capacidade de apreensão racional dos fatos”.

A morte de Cicinha encheu-se de impunidade por todos os lados. Assim como nenhum policial militar foi responsabilizado pela morte da menina, não houve qualquer punição para os policiais civis que perderam a bala dentro da delegacia. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a Corregedoria da Polícia Civil limitou-se a instaurar uma “apuração preliminar” para investigar o sumiço do projétil. O resultado? Arquivada por “falta de provas”.


Quem sobrevive não tem o que fazer senão seguir em frente como pode. Aparecida mudou-se da Favela São Remo, porque não conseguia viver num local tão carregado de lembranças. E os moradores da comunidade não brincaram mais de guerra de ovos no Carnaval.

Mergulhada na depressão, dependente de remédios psiquiátricos para tudo, Aparecida não conseguiu mais voltar ao trabalho. Demorou até se livrar dos pensamentos de tirar a própria vida, a vontade de deitar e não ver mais amanhecer o dia. Passou a viver de uma pensão concedida por causa da morte da filha, “um benefício que nenhuma mãe do mundo queria receber”, e da ajuda dos irmãos e da mãe. Usou uma parte do valor dos direitos trabalhistas deixado pela filha para comprar uma casa para o pai de Cicinha em Alagoas. “Era um dos sonhos dela”, lembra.

Aparecida conseguiu uma vitória na justiça em 2013. A juíza Paula Micheletto Cometti, da 12ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo, acolheu a ação de indenização por dano moral que Aparecida move contra o governo do Estado de São Paulo, por conta da morte de Cícera e do desaparecimento da principal prova do crime.

Em sua defesa, os representantes do governo alegaram que a ação policial que resultou na morte de Cicinha “deu-se no exercício regular de um direito, não sendo, portanto, revestido de qualquer ilicitude”. Além disso, a absolvição do soldado no Tribunal do Júri teria provado que o Estado não era responsável pelo assassinato. E nem pelo sumiço da bala. Afinal, “o fato do projétil não haver sido localizado não pode ser imputado à responsabilidade do Poder Público”, que teria adotado “todas as medidas possíveis na tentativa de localização”.

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A juíza rejeitou as alegações do governo e criticou a “pura ineficiência do Estado” de “permitir o extravio de material essencial à formação de prova crucial”. Concluiu que “a ré foi absolutamente ineficiente em deixar extraviar material relevante para a produção de prova essencial”. E condenou o governo a pagar uma indenização no valor de 200 salários mínimos.

Só não arbitrou valor maior porque a autora da ação é pobre. “No que tange à condição sócio-econômica das partes, a autora não demonstrou possuir padrão de vida elevado (nota-se que em sua qualificação, na peça inicial, a mesma qualificou-se como ajudante de cozinha), devendo a indenização ser fixada em valor compatível com o seu padrão de vida, para que possa gerar conforto a ela, sem causar enriquecimento ilícito em desfavor do Estado”, afirma a juíza na sentença.

É uma jurisprudência levada a sério pela Justiça no Brasil, a de que vidas devem ser indenizadas conforme a condição financeira das vítimas: o Estado paga mais quando mata ricos e menos quando mata pobres. Para o advogado de Cícera, Enéas de Oliveira Matos, uma possível consequência desse critério é levar o Poder Público a se importar menos com a vida dos que não têm grana, já que suas mortes saem barato para os cofres públicos. “É como se o Estado dissesse aos seus policiais: não precisam ter cuidado com os pobres, porque a indenização é baixa”, afirma.

Ajude a Ponte!

Aparecida ainda não recebeu um centavo da indenização. É um dinheiro que teria ajudado muito em 2016, quando perdeu quase tudo o que tinha em uma enchente no bairro do Rio Pequeno, zona oeste. Após escapar das águas, mudou-se para a casinha da Vila Dalva, onde a entrevistei. Hoje, está de volta ao Rio Pequeno, se virando como pode. “Meu filho, se eu fosse depender, pra viver a minha vida, dessa indenização aí, pra comer, comprar remédio, já tinha morrido há muito tempo. Nada. A justiça que eu creio é a de Deus, porque a nossa está perdida”, contou, em 12/5 deste ano.

Aparecida não sabia, mas o endereço onde passou a viver, na avenida Pablo Casals, ficava a uma quadra do local onde a Polícia Militar executou dois jovens, Cesar Dias de Oliveira e Ricardo Tavares da Silva, em julho de 2012. É a triste geografia das periferias brasileiras: em cada esquina há histórias de injustiça e morte que se cruzam.


Aparecida vive sozinha. Ela e Deus, uma cachorrinha chamada Suzy e as lembranças de Cícera. Raramente sai de casa. Quando consegue, é para ir à igreja, onde vai perguntar a Deus o porquê de tanto sofrimento.

— Não tenho resposta, mas eu creio que um dia as coisas vão melhorar.

Atualizado em 12/5, às 11h15, para incluir fala de Maria Aparecida sobre sua situação atual

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