Com música, cartas psicografadas e esperança de um dia conseguir justiça, pais e irmãs lutam para seguir em frente após o assassinato, em 2015, de Laura Vermont, jovem transexual muita amada por todos eles
Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016
Zilda Laurentino viveu praticamente toda a sua vida na zona leste da cidade de São Paulo. Todos os momentos marcantes foram por lá, desde os primeiros passos às fases de felicidade e as de tristeza.
Nascida no bairro de São Miguel Paulista, escreveu cada novo capítulo nas ruas do bairro, onde decidiu permanecer desde o adeus à casa dos pais, com 17 anos. Cedo demais, como ela mesma define, por conta do excesso de proteção à época.
Mães em Luta
Débora Maria da Silva: ‘Ser Mãe de Maio me alimenta’
‘Foram viajar. Um dia viajo também. Vamos nos encontrar e matar as saudades’
Francilene: ‘Desaparecimentos não estão nas estatísticas, apenas em nossos peitos’
Maria Aparecida e a bala (duas vezes) perdida
Waltrina Middleton: ‘O lamento das mães no Brasil e nos EUA é muito semelhante’
‘As mães que lutam contra o Estado representam tudo de bom que tem nesse mundo’
Vânia perdeu o irmão para a violência policial e a mãe para a injustiça, mas segue na luta: ‘agora é pelos dois’
Zilda, mãe de Laura Vermont: ‘A Justiça não trata uma pessoa trans como se deve’
Ana Paula, mais uma sobrevivente: ‘enquanto tiver forças, serei a voz do meu filho’
Rute e o holocausto de Davi
Violentada por um policial, Cleuza deu à luz Fernando. Dezoito anos depois, a PM o matou
Quando jovem, Ivani sonhava em ser policial. Adulta, viu a PM matar seu filho
‘Eu confiava na polícia’, diz Maria, mãe de Márcio, morto pela PM
As lutas de Luana
Mudou-se para o lar com o primeiro marido, Moraci. Ali, a então adolescente teve o primeiro negócio. Assumiu a administração de um açougue quase falido, o reestruturou e deu início à carreira de comerciante, fonte de renda com a qual sustentou os três filhos. No entanto, nenhuma daquelas ruas e vielas do bairro soma tantas lembranças na memória quanto a avenida Nordestina, via que liga o bairro à Vila Minerva, em Guaianazes.
São oito quilômetros de extensão entre São Miguel e Guaianazes, território máximo ao leste da capital paulista antes de invadir as cidades vizinhas, já na Grande São Paulo. Ainda no começo da longa avenida, aquele açougue era o ponto de partida para uma bem-sucedida trajetória como comerciante.
— Sempre fui comerciante, sempre trabalhei no comércio. Fui professora de pré-escola em Santo Amaro, escola Mágico de Oz. Nem sei se existe mais essa escola. Tem muitos anos. Depois, fui trabalhar no Mercado Municipal de São Miguel, fiquei alguns dias lá. Logo em seguida casei, com 16, 17 anos. Naquela época, pai e mãe no pé, eu tinha de pular a janela para sair e, quando chegava, apanhava. Meu pai me buscava na escola. Aí, depois que casei, comprei um açougue na Avenida Nordestina. E eu mesma tive a ideia, corri atrás, fui no banco resolver tudo. Pegamos um açougue falido, que hoje é uma autopeças, algo assim. Depois desse açougue, já pegamos uma padaria no Vila Mara e embalamos de padaria em padaria e estamos até hoje. Conheci o Jackson, separei do primeiro marido, casei com ele… Do primeiro tive duas filhas, a Geni e a Rejane Laurentino de Araújo Neves, e dele tive o Guguzinho, e embalamos — recorda-se.
Leia também: Governo de SP é condenado a pagar R$ 50 mil para família de Laura Vermont
Foi a luta diária nas vendas a fonte de renda para criar as filhas Geni e Rejane, frutos do primeiro casamento. Dividia-se entre o empreendimento e a criação das duas, ambas tarefas complexas por si só, ao mesmo tempo, então, esforços árduos. A união teve fim, mas Zilda seguiu com a mesma rotina. Anos mais tarde, um novo amor: Jackson, igualmente comerciante. Os dois já se mantinham da renda das padarias sob o comando deles quando nasceu o primeiro filho do novo casal, Guguzinho. Era 1996 quando o mais novo membro da família desembarcou no mundo. Dali para frente, virou o centro das atenções do quinteto.
— Lembro bem de quando ele nasceu. Foram três ou quatro dias de festa. Meu padrasto, naquela época tínhamos padaria, ficou três dias bebendo dia e noite, comemorando. Eu falava que não aguentava e eles só comemoravam que o Guguzinho nasceu. Foi muita festa. A chegada… Foi maravilhoso. Não tenho palavras para explicar, foi tão inesperado. Uma sensação muito boa. Chegou mudando a família. Desde pequeno, já tinha jeito para a transformação. Não gostava de carrinho, era boneca. Íamos na loja, ia direto nos sapatos de mulher, de florzinha. Foi criado com muita manha, mesmo. Tudo o que queria estava na mão, nunca ouviu um não da gente — relembra a irmã Rejane, com semblante alegre, mas incapaz de esconder a tristeza que a acompanha desde o meio de 2015.
Anos mais tarde, Gugu se descobriria Laura, transexual, com suporte total dos pais. Longe da imaginação da jovem, então com 17 anos, ter liberdade plena e ainda suporte de Zilda e Jackson para se assumir.
Precisou de anos para formar dentro de si a segurança para sentar com o pai e contar sobre a sua realidade. Sobre a mãe, já sabia: teria o apoio independente da questão, independente do que escolhesse para a vida. Esse passo já tinha na cabeça como dado, mesmo não tendo formalizado para dona Zilda. Faltava falar para o pai, Jackson. Sentou com ele antes do Natal de 2013, explicou a situação.
— E como é que foi, Jackson? — questiona a mãe.
— Na hora, perguntei se era isso mesmo, se não está fazendo por baixo de nada, não. Aí, chegou no Natal e me perguntou: ‘Pai, que roupa eu visto?’ Falei que a que ele quisesse. Aí se trajou de mulher. Foi no Natal de 2013, se não estou enganado… — puxa da memória o pai.
— Foi em 2013, sim — confirma Rejane, da cozinha.
— Ela se transformou de uma hora para outra. De homem para mulher — explica Jackson, sobre a mudança da única filha.
Leia também: Crimes de Maio de 2006: o massacre que o Brasil ignora
Questionada sobre como acompanhou o processo de transição de Laura, Zilda pede um tempo. “Vou pegar umas fotos e você vai ver”, diz. Deixa o sofá da casa, vai até o quarto e, em alguns minutos, volta com uma pilha de fotografias, um dicionário sobre sonhos — pedido feito pela filha —, um caderno com diversas anotações, praticamente todas letras de músicas feitas pela mãe e um quadro. Nele aparece uma foto de perfil da jovem, com os dizeres “Que a minha vontade de vencer seja maior que meu querer de desistir. Boa tarde”.
A mãe revela:
— No início foi engraçado. Começou se trajando todo de preto, uns roupão doido. Depois falava “sou skatista”. E eu falava “Pronto, virou maloqueiro, não é possível!” (risos). Quando pensou que não, junto com minha sobrinha, agora somos não sei o que lá que nós vamos no cemitério. Falei “ferrou”. Virou gótico. Cada época era uma coisa. E, afinal de contas, você gosta do quê? “Pai, mãe, eu gosto de homem e de mulher”. Eu falei: “Homem e mulher?”. E ainda arrumou uma namorada na praia feia que dói. Mas não teve quem não risse comigo no condomínio. Falei: “filha da mãe, ainda me arruma uma coisa feia dessa”, e ele rebatia “Mãe, era a que tinha na hora”. Tinha 10, 12 anos. Coisa de adolescente. Era assim. Quando passou mais um tempo, chamou e conversou. A primeira pessoa com quem ela conversou foi logo com o pai. Ele sabia que eu aceitava tudo, com a mãe não tem horror. Se eu ia trabalhar, ele levava o skate para ficar descendo avenida abaixo. Quer dizer, tudo o que queria, a mãe dizia tá bom.
Laura Vermont foi o nome que escolheu após a transição.
Jackson e Zilda moravam juntos em uma casa na avenida Nordestina. Os pais seguiam tocando a padaria com o suporte da filha, contribuição que dava também pensando em comprar suas coisas. Roupas, sapatos, maquiagem, cabeleireiro… Mas egoísmo estava longe de ser uma característica dela.
— É chegar no bairro e perguntar de Laura, Guguzinho… Era Guguzinho lá também. Quando criança, sabe o que fazia? Chamava os filhos dos vizinhos tudo e ia para a lojinha de calçado. Quando ia ver, a conta estava lá em cima (risos). Tirava a roupa do corpo para qualquer um que precisava. Se falasse que tava precisando, vinha falar com a gente. “Pai, mãe tenho um assunto para vocês. Esse aqui é amigo da gente, a família colocou para fora de casa. Deixa ficar um tempinho aqui até a família ficar mais calma.” Acredita nessa? Sempre dava suporte para os amigos que precisavam. Sempre tinha um, dois dentro de casa porque a família não aceitava, porque brigou — relembra a mãe, com um sorriso nostálgico no rosto, de um tempo que não volta. E de uma ausência sem forma de ser preenchida.
Zilda permaneceu com orgulho do bairro de origem até o começo deste ano, quando já não tinha mais Laura ao seu lado. Mudou-se para o litoral de São Paulo, pois não consegue nem sequer passar em frente à casa onde morava com o marido e a filha.
Tudo mudou drasticamente desde a noite do dia 20 de junho de 2015. Laura saiu com os amigos e não voltou mais. A jovem, então com 19 anos, foi agredida por cinco homens e, depois, por dois policiais militares. Tentou fugir por duas vezes. Primeiro, do quinteto. Machucada, conseguiu chamar a atenção dos PMs, que, em um primeiro momento, a ignoraram, depois, voltaram.
O desentendimento anterior prosseguiu com a dupla de agentes do Estado. Laura tentou fugir novamente, mas não teve chance e morreu depois de ser levada para um hospital. A via fica na Vila Nova Curuçá, justamente a avenida Nordestina.
Leia também: O legado de Anyky Lima, ativista travesti: ‘eles me querem morta, mas esqueceram que eu sou uma semente’
— Mudou tudo para nós. Acabou completamente com toda a estrutura. Foi como um furacão. Como se da noite para o dia tudo se transformasse em um pesadelo. E desse pesadelo a gente não volta mais para o normal. Não tem como voltar. E cadê nossa Justiça? Fala para mim. Não tem — conta Zilda.
— Só sei dizer uma coisa: a gente era uma família feliz. E essa felicidade tiraram da gente. Acabou com ela. O que mais me revolta é saber o porquê. Por ser trans, travesti, seja lá o que for. Não tem o direito de viver? Só que se fosse uma mulher que tivessem matado, eu acho, creio, que a Justiça seria diferente. Como foi uma trans, a Justiça não está tratando como se deve. Nós estamos vivendo por Justiça. Tudo o que fazíamos antes… A gente trabalhava, tinha vida… Ela era a nossa inspiração. Sabe quando acaba? Hoje a gente vive assim: vamos para a igreja, vamos pedir uma palavra. O que nós queremos, mesmo, é que parem com isso. Você pode ver passando na televisão. Quando algum caso acontece é porque tem uma família em cima, porque, senão, ninguém nem fica sabendo. A Laura mesmo. Só ficamos sabendo porque foi perto de casa, senão, não ficaríamos. Até nisso Deus colocou a mão.
A morte de Laura segue incompleta até o momento. Quando apresentaram a ocorrência na delegacia, os policiais militares envolvidos explicaram o caso como morte após desobediência e furto. Disseram ter abordado a jovem, já ferida, que se recusou a conversar com eles, roubou a viatura na qual estavam e, após bater o veículo em um poste, tentou fugir e foi atingida na cabeça por um ônibus.
Versão totalmente contestada pela Polícia Civil, que ouviu uma testemunha apresentada pela dupla de PMs e confessou ter mentido no depoimento. Os PMs Ailton de Jesus e Diego Clemente Mendes foram presos por quatro dias e, depois, liberados.
Leia também: Eloá Rodrigues: travesti, preta e Miss Beleza T Brasil
Os outro cinco acusados, Van Basten Bizarrias de Deus, Jefferson Rodrigues Paulo, Iago Bizarrias de Deus, Wilson de Jesus Marcolino e Bruno Rodrigues de Oliveira, todos responsáveis diretamente pelo espancamento de Laura, respondem em liberdade ao processo pelo homicídio da jovem. Liberdade, algo não sentido mais pelos pais.
— Olha, até hoje vivemos dopados. É calmante, tudo… E é sempre esperando ela chegar em casa. Sempre. Sabe quando dá a impressão de que a pessoa vai chegar? Outro dia mesmo, estava na cama, deitada, escutei a voz “Mãe, ô mãe!”. Levantei e pensei “Não, não acredito!”. Eu o chamava de Gugu, era nosso Guguzinho. Fiz: “Não, Gu, não acredito”. Isso era 4h da manhã. Sentei no batente da porta e fiquei até as 6h e pouco da manhã. É sempre esperando. Só que ela já me mandou nas cartas psicografadas: “Mãe, não espera. Não vou voltar. Mãe, eu estou bem. Pai, não quero ver vocês assim”. É mãe e pai que fala toda hora e da irmã, Rejane. Eram muito próximas. “Se inspire, agora, na Julinha”. É a pequenininha, sobrinha dela. Você acredita nessa?’ — comenta Zilda, ao lado de um maço de cigarro.
Fumar já era um hábito antes do trágico acontecimento, mas potencializado dali para frente. Um maço era o máximo por dia antes. Depois da morte de Laura, diariamente dois ou três viraram rotina, bem como noites mal dormidas.
Leia também: Mesmo com pandemia, Brasil registra recorde de transfeminicídios em 2020
Dias após a entrevista feita na casa de Rejane, um telefonema para Zilda, a fim de preencher algumas lacunas da história, mas ela dormia. Era meio-dia.
— Desculpa, minha mãe passou a noite em claro e só conseguiu dormir agora pouco. O que deseja? — atendeu Rejane, solícita.
— Eu tinha a Laura como uma filha para mim. Desde bebê. Sempre estávamos juntas. Era meu chicletinho. Quando eu não queria levar para fazer as coisas, ela começava a chorar. “Mãe, pai, a Rê não quer me levar”. Aí o Jackson olhava para minha mãe e eu já dizia: “Tá, vem Gugu!”. Entrava no carro e eu reclamava. Íamos, ficava de boa. Depois, foi crescendo e, quando ele tinha 11, 12 anos, quando eu fiquei grávida da Júlia, pedi para sair para ir no shopping para comprar um uniforme do Corinthians para o meu marido, foi quando ela começou a conhecer o pessoal do LGBT, se envolver mais. Ela ficava muito na minha casa. Passava a semana. Férias da escola era comigo. Minha mãe brincava que ia levar as coisas dela para mudar para minha casa. E ela dizia: “Tá bom, mãe, vou voltar para casa”. Ela ficava 15 dias, tinha vezes que ficava um mês. Então, sempre quando precisava de alguma coisa, parte de escola, ir em médico, quando não dava para minha mãe ir, eu sempre estava junto — lembra a irmã mais velha.
— Eu tinha acabado de ganhar neném. Foi um baque… Muito grande. E se falar, na real, minha mente se ocupa com as crianças, porque, se você encostar para pensar, você não aguenta. A saudade é muito grande. O amor é demais. E a falta que faz… Porque, querendo ou não, era muito presente. O baque quando fiquei sabendo… Para mim, no começo, quando minha tia veio avisar que bateram nela, jamais imaginei que tinham tirado a vida dela naquele momento. A hora que ela falou “o Gugu não está mais aqui com a gente”, nossa, meu mundo acabou ali. Fique sem chão, sem saber o que fazer. Pedi: “Deus, tão nova, com tantos sonhos e eu aqui. Por que o Senhor não me levou no lugar dela? Não deixou ela viver?”. Perdi o rumo, mesmo — lembra Rejane, que, pouco depois de perder a irmã, viu os pais se mudarem do bairro. Ficou com o marido, Neto, e as duas filhas, Júlia e Yasmin.
O casal, então, começou a se revezar entre o litoral do Estado e o bairro. Visita para as filhas e netas se mesclavam com viagens para as audiência e protestos envolvendo o assassinato de Laura. Mas a rotina não se resumia a esses dois lugares. Um, em especial, virou refúgio para Zilda e Jackson: Lorena.
Leia também: Erica Malunguinho: mulher trans, deputada, educadora e artista plástica
Na cidade interiorana, ambos encontraram um centro espírita, após assistirem a uma propaganda pela televisão. Viram que ali poderia ser um alento para amenizar a situação na qual estavam. Antes, nunca nem sequer haviam cogitado visitar um centro. A primeira visita quase os fez mudar de vez de ideia. Não só o conceito do lugar, mas também, mudar de fato.
— Não frequentava centro espírita antes. Tive a ideia porque vi na televisão passar o Rogério Leite e falando de cartas psicografadas. Você procura, procura todos os lados e nunca tinha ido. Tenho uma pilha de cartas, já. No começo, queria ir toda semana para lá. Se pudesse, tinha me mudado para lá, ficado lá. Porque o Rogério Leite mesmo falou para irmos para lá que eles davam um jeito, arrumavam um canto, porque via que a gente precisava de apoio. Nós não fomos, porque a Rejane começou a chorar. Já estávamos no litoral nessa época. Porque aqui é um transtorno ficar. Você passa na avenida, você vê tudo. De ponta a ponta. Tudo relembra. Ela nasceu lá — explica Zilda, mostrando as cartas psicografadas que recebeu da filha.
Essa foi uma das formas encontradas para amenizar a dor e a saudade. A outra é compor.
— Hoje, nós vivemos para fazer música. Essa aqui foi a minha. Pegar um caderno, ficar escrevendo… Esse dicionário era da Laura, que ela me fez comprar, que era de sonhos. Só que eu olho, olho e não acho significado nenhum aqui. Eu não entendo nada — ri a mãe, saudosa.
O crime contra Laura fez com que a família entrasse para a militância. Atuam para combater a violação de direitos de transexuais, travestis e a classe LGBT como um todo.
— As Mães de Maio fizeram a primeira passeata, assim que ela faleceu. Mandaram mensagem, postaram no Facebook, organizaram tudo. Foi a Luiza Coppieters, aí apareceram outras, também, para ajudar. A Lolita ajudou bastante, e continua, e já nos chamaram para o movimento. O que tem, elas estão junto. Luiz Arruda… É um amor de pessoa. Neto Lucan. Sempre que vamos fazer protesto, comparecem — aponta Rejane, sempre presente nos atos acompanhada das filhas, do marido e dos pais.
Aquele quadro em meio às fotos da família é levado por Zilda para todos os protestos por Justiça, bem como as camisetas que usam com a foto e o nome de Laura Vermont.
Junto das imagens, quatro destoam do restante.“Guardo as fotos dos assassinos. Meu marido ainda não viu. Para não esquecer”, revela Zilda, mudando a feição.
— Existem três justiças: a divina, que a Laura já falou para a gente se tranquilizar, que eles responderão lá em cima; a do homem, que estamos lutando bastante para virar realidade; e a nossa. Eu vivo sonhando encontrá-los. Não sei qual vai ser minha reação. E olha que eu tenho andado… O que está me prendendo para cá… Fiquei sabendo de um centro e fui até lá ver se eles estavam por ali. Até os assassinos, mesmo. Não só os policiais. Eles continuam desse mesmo jeitinho, nós vimos no fórum. Todos na rua e é tudo daqui de perto. São em cinco, um fugiu. Depois disso, fiquei com problema no coração. Nunca passei em médico. Hoje, terei de passar. Pressão alta. Agora, está abaixando — explica Zilda, que relembra as mudanças do bairro e a conecta com a segurança, assim como o descrédito da polícia.
Leia também: Escola, trabalho, saúde: pesquisa inédita revela a realidade da população trans de SP
— Mudou muito desde que nasci para cá. Antigamente era melhor do que agora, mais seguro. Antes tinha segurança, não tínhamos medo da polícia como temos hoje. Essa é a realidade. Antes mesmo do que aconteceu já tínhamos essa sensação. Sabemos bem como é a polícia na periferia. E o pior: muitas coisas acontecem e o povo não fala, vê e não fala, porque tem medo. Medo. Eles vão coagir. Essa é a realidade. E eles fazem e ficam impunes. Vou te falar, começou essa descrença na polícia porque eles, que são para socorrer, não socorrem. Se eu te contar que teve uma confusão uma época atrás, há uns dois meses, você não acredita. Minha cunhada chamou a polícia e sabe o que o policial disse? Vi porque estava lá fora: “Cada quem que faça a sua segurança. Eu estou fazendo a minha, só olhando, porque daqui a pouco eu vou embora”. Foi o que falou para a gente. Minha cunhada não acreditou.
— Tem certa hora que não saio mais para a rua. Se estou trabalhando, estou aqui porque é trabalho. Quando acabar, vou direto para casa. Estou fazendo minha segurança, vocês façam a de vocês”. Falou assim para a minha cunhada. Fiquei… Acredita nessa?! A própria polícia falar isso para você. Liga, pede socorro, e cadê? Por que chama? Cada quem faça sua segurança. Foi isso o que eles falaram. Vai confiar? No caso da Laura, porque a polícia, quando viu a confusão, não parou para socorrer? Passaram direto — lamenta Zilda, seguida pela filha.
— Eu nunca tive problema com a polícia antes. Nunca imaginei. Só comecei a perceber que polícia é contra as trans porque, quando saíamos de carro e passava a polícia, ela falava um nome, que esqueci. E, realmente, você via que, quando passava a viatura, eles olha vam para o carro diferente. Desde de que a Laura se assumiu teve problema com a polícia, não tinha sido a primeira vez. Teve uma época que bateram nela, antes disso. Não sei direito, mas tinha polícia no meio — emenda Rejane. — Não encontramos nenhum deles [dos envolvidos na morte de Laura] ainda. Eita que vontade, que sonho… Dói muito, viu? O jeito que minha mãe e meu padrasto estão… — diz, às lágrimas.
Seis anos depois, a data para o júri popular dos cinco réus ainda não foi definida. O julgamento por homicídio doloso (quando há intenção de matar) foi adiado duas vezes. Os acusados respondem em liberdade.
Já os policiais militares foram demitidos da corporação em dezembro de 2016, conforme publicação no Diário Oficial do Estado. Em abril deste ano, o Estado de São Paulo foi condenado a pagar R$ 50 mil de indenização por dano moral aos pais de Laura. Na sentença, o juiz Kenichi Koyama atendeu parcialmente ao pedido da Defensoria Pública, reconhecendo que os PMs Ailton e Diego foram negligentes na abordagem e cometeram fraude processual ao mentirem em depoimento, mas que não seriam os responsáveis diretos pela morte da jovem, já que o laudo médico identificou que ela morreu por traumatismo craniano e não por disparo de arma feito por Ailton, que a atingiu no braço.
Zilda contou, na semana passada, que estava revoltada com a decisão. “Não tem valor que pague pela vida da minha filha, eu não consigo tê-la de volta, mas o Estado precisa responder pela morte dela. Não tem cabimento uma decisão dessa. O Estado também matou minha filha”, lamentou.