Débora Maria da Silva: ‘Ser Mãe de Maio me alimenta’

“O Estado destruiu minha família. Me sinto Mães de Maio porque não tenho mais como respirar sem esse movimento”, relata uma das fundadoras do Movimento Independente Mães de Maio, que há 15 anos combate a violência policial no Brasil

Ilustração: Junião

Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016

Cinco dias internada em um hospital sem conseguir comer direito, mal sair da cama e vendo uma parte da vida partir rumo a um caminho distante, de onde nunca mais voltaria. Débora Maria da Silva permaneceu praticamente sem reação nos momentos posteriores à morte do filho, Edson Rogério Silva dos Santos. Choque natural tamanha a perda e o modo como aconteceu.

Era maio de 2006, o mais sangrento da história de São Paulo. Mais de 500 pessoas foram assassinadas em 30 dias, em decorrência das respostas dos agentes das forças de segurança aos ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC, entre 59 agentes do Estado e 505 civis. Rogério foi uma das vítimas entre as pessoas comuns em Santos, no litoral, cidade onde ele e a mãe viveram por toda a vida. Aqueles momentos de desilusão de Débora tiveram fim, segundo ela, graças ao sobrenatural.

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— No quinto dia, fraca, o Rogério apareceu para mim. Foi a primeira e última vez. Ele me arrancou da cama, não sei como foi. Lembro só dos braços quando ele me arrastou. Como que pode uma pessoa te pegar de frente? Eu pensei que estava delirando porque eram cinco dias tomando soro na veia… Eu só tremia — conta Débora.

Ela custava a acreditar no que tinha visto. O filho, bem ali, na sua frente? Impossível! Até ter uma prova definitiva de que o encontro, de fato, aconteceu naquele hospital.

— Fui tomar banho no dia seguinte. Quando passei o sabonete no braço, eu senti uma dor. Levantei o braço e tinha uma mancha roxa, bem preta, e me assustei. Olhei para o outro, também estava. Olhei para debaixo dos braços e eram os quatro dedos dele marcados em mim — conta.

Naquele instante, Débora já não tinha mais dúvidas: era Rogério quem a tinha chacoalhado. Foi quando veio à tona em sua cabeça a mensagem deixada pelo filho. Não foi um recado qualquer.

— Quando me puxou da cama, ele disse: “Mãe, luta pelos que estão vivos. Eu não volto mais. Aqui não é o seu lugar, não é para a senhora ficar aí”. Foi quando comecei a ir atrás das outras mães — relembra.

Ali, naquele instante e naquela cama de hospital, nascia, a pedido de um filho vítima da violência do Estado, o Movimento Independente Mães de Maio.

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Foram dela os primeiros passos para reunir o grupo, amadurecido e transformado em um coletivo independente. São quinze anos de lutas diárias em busca de Justiça Social. Uma a uma, as mães se juntaram, somaram forças e caminham lado a lado, seja em protestos, debates com o governo ou oferecendo apoio às novas vítimas da violência estatal. Débora fez desses anos de sua vida uma busca incessante por respostas. Transformou cada segundo do tempo em guerra, ao mesmo tempo particular e coletiva, para buscar a verdade dos Crimes de Maio de 2006.

— É o ar que respiro — define.

Engana-se, contudo, quem imagina a resistência dessa mulher vir somente na década pós-2006. Pode ter ganhado força, mas a bravura é de muito antes. Com apenas três anos, ela veio com os pais de Recife, Pernambuco, onde nasceu.

Eram Débora, o pai, a mãe, a irmã Bethânia e o irmão Dema. A família viajou de navio para o litoral de São Paulo. Desembarcaram em São Vicente e logo arrumaram uma casa alugada. Só deixaram o aluguel graças à avó paterna. Um ladrão invadiu a casa e tropeçou na então irmã mais nova de Débora, Cláudia, o que fez o coração da avó falar mais alto. Comprou um terreno para o filho e a família ganhou um espaço só para eles. Mas a vida seguia sendo uma batalha diária.

— Eu, muito menina, já trabalhava. A gente era servente de pedreiro do meu pai. Ele era dos bons, e a gente ajudava. Tive uma vida muito sofrida, sem infância. Era criança e o ajudava a fazer o serviço. Como tinha de multiplicar o dinheiro, meu pai não tinha ajudante, então éramos nós. A situação não era fácil. Fazíamos amarração de ferro para as colunas, virávamos concreto… E eu sempre fui radical, tentava fazer o meu limite para ajudar — conta.

Mas aqueles não eram os únicos trabalhos exercidos com apenas oito anos de idade. Débora aprendeu desde cedo a fazer bordado:

— Pegava sacos de leite usados para produzir bolsas e as trocava por comida, roupas… O que precisavam através do escambo. Foi uma vida de sobrevivência que tivemos.

Tinha de pegar barris de água longe de casa, uma caminhada de meia hora com um peso enorme em cima da cabeça, da “boca do leão”, como chamavam a fonte, até o bairro no qual moravam, no entorno no Jóquei Club de São Vicente. Se o local era glamuroso pelas pessoas que o visitavam, as casas vizinhas destoavam. Seus donos, pessoas humildes, habitavam a periferia do município após o loteamento de um grande areal. Terreno por terreno, o entorno do Jóquei foi ficando habitado.

Aos poucos, as condições básicas de vida chegaram. Primeiro, água encanada, o que livrou Debora de uma de suas duas tarefas. Em seguida, a luz. Não que a ausência de energia elétrica os impedisse de viver. Brincavam, iam para a igreja e até mesmo andar de bicicleta nas noites eles conseguiam, somente com a luz da lua, das estrelas e dos raros faróis de carros. Saneamento básico veio por último, deixando a família com um misto de felicidade e tristeza. Por quê? Um dos sustentos deles, a caça de rãs, praticamente se esvaiu com os canos do esgoto. Nada que não superassem, mesmo já sendo em 12 irmãos, sendo oito mulheres — vivas até hoje — e quatro homens — um vivo, um desaparecido e dois mortos antes do nascimento ou quando bebê.

Ajudar o pai no trabalho estava longe de ser a única tarefa em casa. A mãe fazia questão de ensinar as obrigações domésticas para todos.

— Minha mãe era uma paraibana porreta. Ela teve oito mulheres e nos ensinou a ser mulheres. Sem querer desprezar as outras ou me gabar, mas são mulheres guerreiras. O trabalho de pedreiro do nosso pai nos trouxe responsabilidade, e a minha mãe, a dignidade de uma mulher — explica Débora.

Considera a mãe uma Amélia, denominação para o tipo de mulher submissa ao homem e aos deveres do lar. Só que não passava um certo escravismo às filhas. Débora, então, aceitava somente até onde tinha por consciência ser seu espaço naquele mundo. Muita submissão? Estava fora.

A segunda filha tinha o desafio de lustrar as panelas da mãe. Inclusive aquelas furadas de tão velhas. Nunca entendeu o motivo de tamanha neura por limpeza. Passados tantos anos, ainda leva consigo esse ensinamento e descobriu a finalidade: ensinar higiene. O caneco do café, como chama a leiteira, considera ser a coisa mais sagrada dentro de sua cozinha. Não só na dela, como na das filhas, a quem passou a tradição. E não é caneco de aço inox, antiaderente, não. Escolhem as mais simples, as únicas capazes de pegar e dar o brilho tradicional vindo do sangue da avó.

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E assim passou até os 12 anos. Em um período, ajudava o pai com as obrigações para levar renda para a casa. No outro, estava com as panelas na mão ou limpando a casa. Mas não demorou a ter seu primeiro emprego. Contou com a ajuda do pai para começar a trabalhar em uma fábrica de macarrão, a mesma onde ele havia conseguido um trabalho fichado — na época, como se chamavam os empregos de carteira assinada. Um a um, os filhos seguiam o rumo dele. Primeiro Betânia, depois Dema e chegou a vez de Débora. Ali, começou a ter uma quebra no relacionamento entre pai e filha.

O primeiro salário como empacotadeira tinha de ser levado para a mesa da família, conforme cobrou o patriarca. Ele só não contava com uma dívida já feita pela então nova trabalhadora.

 — Eu passei na loja e encomendei uma calça comprida azul piscina. Por sermos evangélicos, ele não deixava a gente usar, era só saia, tínhamos cabelão… Ele cobrou o salário, eu não tinha. Então, pegou minha calça e cortou. Aí a rebeldia começou e, junto, o proibicionismo.

Sorte dela que o dono da loja, seu Manolo, ficou com pena e deu uma calça nova de presente. Entregou nas mãos do pai, que, dessa vez, não usou a tesoura, mas a proibiu de vestir a peça.

 — Se usasse, era pra nunca mais olhar na cara dele. Aí, resolvi cortar o cabelo curtinho. Era um cabelão todo cacheado. Cheguei em casa, ele viu, perguntou quem era aquele homem sentado na sala. Quando tirei a sobrancelha, foi a gota d’água. Corria atrás de mim com um facão em volta da cama de casal dele e da minha mãe.

A rebeldia, segundo ela, não parou por aí. Deixou de ir com a família frequentemente para a igreja. Em um teatro para celebrar o nascimento de Jesus, o ápice, teve de encontrar um garoto para representar o filho de Deus. Débora saiu na vizinhança procurando e, no fim, encontrou o filho de uma moça da umbanda, religião pouco respeitada pelo pai.

Não teve dúvidas: levou o garoto e prometeu entregar logo para a mãe. Minutos antes de começar a encenação, brigou com o irmão e quebrou a asa dele. Dema era um dos anjos da cena. Corre para lá, corre para cá. Um tumulto para resolver o problema a tempo. A peça atrasou, a mãe chegou para buscar o menino e o pai de Débora, pastor da igreja que frequentavam, logo identificou que se tratava de uma umbandista.

O maior desentendimento foi aos 14 anos. Trabalhava na fábrica no carnaval. Os funcionários tinham de atingir a meta para saírem todos às 16h de uma sexta-feira para aproveitar as festas.

— Eu era uma máquina. Trabalhei, não fiz hora de almoço, trabalhei, trabalhei… Deu 15 pras 4 eu parei para limpar o maquinário, o chão e higienizar. Deu o horário, ele nos chamou e disse que não sairíamos porque parei antes de trabalhar. Ele queria que fizesse aquilo depois do meu horário. Aí, a cobra torceu o rabo. Falei que não ficava mais e fui para o baile. Quando voltei para trabalhar na segunda-feira, fui no escritório. Disse que não estava ali para ser reprimida, mas para pedir as contas. Ofereceram salário maior e não quis.

Como não acatava mais tudo que eles ordenavam de bate-pronto, a convivência ficava insustentável. Chegou ao ponto de ter de escolher entre a igreja e o baile, chamado de Beira. Escolheu o Beira.

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Débora estava prestes a completar 15 anos justamente quando conheceu o pai dos três filhos, Edson Barros. Ele fazia parte de um grupo de rapazes, todos com cabelo black power. Conversaram, ele explicou onde morava e ela foi atrás. Não sabia que Edson era casado no papel, mesmo separado da antiga esposa.

— A mãe dele era cristã. Disse que o Edson tinha uma esposa e perguntou o que eu queria com ele. Simplesmente me apaixonei.

Primeiro, foi morar com uma amiga. Os pais foram atrás da filha, sendo a mãe a mais saudosa de sua presença.

Os dois se viam praticamente escondidos antes disso. Ambos frequentavam os mesmos bailes e, ali, davam um jeito de se encontrar. O medo de Débora envolvia o fato de ele ser casado, como contou a mãe do rapaz. Não era mais. A ex-mulher nunca incomodou os dois.

Passado um tempo na casa da amiga, a garota decidiu se juntar ao futuro marido.

— Fui morar com o Edson. Ele me fez um bolo de 15 anos, ele tinha 18. Dois anos mais tarde, tive o Rogério.

Contou com a ajuda da família dele na gestação. As similaridades entre as casas eram grandes. Edson tinha 13 irmãos, todos muito humildes.

Mas não foi simples o processo do nascimento de Rogério. Bem sofrido, como define. A paixão que sentia pelo esposo era gigante. O problema envolvia as outras mulheres.

 — Essa paixão que tinha por ele era tão alucinada que, hoje, não consigo sentir mais isso. Foi uma vez só. O Edson me fez sofrer muito.

Doqueiro, o homem não largava os bailes. Nem no dia do nascimento do filho. Débora estava com as dores do parto, enquanto ele se divertia. Ficou esperando no portão para ir ao hospital. Foram cinco idas e vindas para Rogério, enfim, nascer. Quase de manhã, Edson chegou com uma caneca de chopp na mão, que foi lançada longe pela mãe, com a bolsa já rompida.

A internação era para o parto normal. O sofrimento foi demais. Muitas dores. O médico se recusava a dar água durante o trabalho de parto, só passar um algodão molhado na boca.

 — Até hoje, não esqueço. Pedi para ir ao banheiro porque estava com dor. Queria que acabasse com a dor. Era insuportável, mas não é como a dor da perda… Fui no banheiro, me arrastando, e bebi água até não querer mais. A dor ficou pior. Gritei como nunca!

Ela nem sabia, mas, na mesma Santa Casa, sua mãe estava para ganhar o irmão mais novo, Robson. Quando gritou de dor, surgiu o outro irmão, Dema, que visitava a mãe. Reconheceu o grito de Débora e a encontrou pedindo socorro na porta do banheiro. Estava toda ensanguentada. Foi levada para a mesa cirúrgica para fazer a cesárea, mesmo sem a anestesia pegar. Não fazia efeito e ela se batia. Débora foi operada a sangue-frio. Rogério nasceu roxo, pois passara da hora ideal para vir à vida. Na operação, ela foi mutilada com os cortes.

Outras duas vidas surgiram do amor de ambos: Kely e Katia. Tinha 21 anos e três filhos, enquanto o marido, mulherengo, dava dor de cabeça. Revoltada com Edson, pegou os filhos e foi embora. O amor havia se transformado em ódio. Tanto que decidiu fazer uma laqueadura. A própria avó paterna dos garotos a levou para uma enfermeira que fazia o procedimento. O pai de Débora, com a renda de pedreiro, deu o dinheiro para a operação. Ele a ajudou por não gostar do marido da filha e por saber que ela sairia da casa logo depois disso. Foi morar com os pais, mas Edson foi atrás. Revoltado, a ameaçou com uma arma, mas, depois, pediu para ela o matar.

 — Falei não. Tinha conhecido a liberdade e ninguém mais a tiraria de mim.

Kely, Katia e Rogério foram com ela. Katia, muito apegada ao pai, recebia todo dia a visita de Edson, que levava leite. O que Debora não suportava.

Os anos foram se passando. A convivência deles era dessa forma, com Debora trabalhando na casa de uma família de classe média. Morava no emprego para aumentar a renda. Ia às quartas-feiras para casa e, no fim de semana, voltava ao trabalho. Até fazia questão de provocá-lo, prometendo visita e, na última hora, não aparecia.

 — Ele se arrumava todo e eu não ia. Para ver que não queria mais nada. Até ele arrumar uma menina mais nova.

Edson já era alcoólatra nessa época. Piorou quando a segunda mulher, com dois filhos, também começou a não dar moral para ele. Mais de uma vez, Katia e Kely o carregaram da padaria onde estava totalmente bêbado para casa. Até que Debora se cansou.

Em uma sexta-feira à noite, pressionou o ex-marido contra a parede. Edson, misterioso, respondeu: “A única coisa que eu quero é que você não deixe meu filho tampar o buraco de ninguém”. Ela não entendeu, mas seguiu brigando e quase partiu para a porrada.

No dia seguinte, de noite, voltou para perguntar, afinal, de qual buraco ele falava. Não o encontrou. Nem encontraria mais. Outro dia e batem na porta de Debora. A notícia? Edson foi morto na mão de policiais. Um agente explicou à ex-sogra que ele tinha sofrido uma overdose, versão questionada por todos. “Mas cachaça não dá overdose…”, mentalizou. Ali era o primeiro encontro de Debora com a violência policial na família. Tinha 31 anos.

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A primeira reação foi pedir um litro de conhaque Dreher. Sentou no meio fio em frente à casa da antiga sogra e ficou observando até a madrugada. Queria investigar ela mesma a polícia. Reparou que toda viatura que passava pelo local olhava dentro da residência. Estranhou. Já era de manhã quando foi à padaria. Queria outra garrafa. Foi quando um Opala da Polícia Militar parou. Três homens e uma mulher desceram do veículo. Ficaram em seu entorno até que dois deles, um casal, andaram até o fim da rua onde ficava a casa de sua sogra, deram a volta no quarteirão e voltaram para o carro. Estranhou de novo.

Decidiu ir ao IML (Instituto Médico Legal) ver o corpo de Edson. O documento apontava uso de drogas. Ela negou. Disse ter o encontrado na mão da polícia. Foi quando o legista mandou recolher o corpo e constatou: não era overdose o motivo da morte, mas, sim, traumatismo craniano. Naquele momento, Debora ligou os pontos.

Dois meses antes da morte de Edson, o casal havia testemunhado a morte de um mecânico por policiais. Bêbado, estava falando um monte até que um agente ouviu e resolveu tirar satisfação. Ele estava em um grupo, entre os homens, ela.

 — Eu mandei a garotada trocar de roupa porque sabia que os policias iriam voltar. Em vez de levá-lo para a Santa Casa, eles levaram para cima do morro e acabaram de matar. Depois, levaram para um hospital em outra cidade. A Força Tática ainda falou para o Edson não falar nada porque a família deles era grande. Deram o recado.

E pensar que não foi a primeira — nem a última — ocorrência policial que enfrentou. Debora ainda teve de conviver com o desaparecimento do irmão, Dema. No período do Esquadrão da Morte, na Baixada Santista, ele sumiu. Era um grupo de matança que jogava corpos de crianças em mangues.

 — Quando meu irmão desapareceu, os inquilinos de um menino que morava perto dele falaram que tinham sido eles — revela.

Correu atrás do irmão em distritos, fóruns, gritava o nome dele na parte de trás das delegacias. Rodou e, por medo do pai, parou de ir atrás. Ele temia represálias da polícia, apesar de nunca ter confidenciado isso para a filha.

Os dois ainda passariam apuros com Rogério, quando ele tinha 18 anos. Não por culpa do garoto. Ele fora acusado injustamente de roubo. Debora correu um quilômetro na chuva até a delegacia. Os policiais forçavam o garoto a assinar o crime, o que não concordava, e até apanhou para isso. O avô o aconselhou a acatar, mesmo sendo inocente. Dito e feito: culpado, permaneceu dois anos e três meses preso. Lá dentro, encontrou o verdadeiro ladrão, mas não fez nada. Debora cobrou.

— Perguntei porque deixou meu filho segurar o assalto? “Ele já assumiu sozinho…”. Aí fui para cima dele.

Ela não aceitava o assalto, tanto que nunca visitou Rogério na cadeia.

O filho tirou a condenação trabalhando na cozinha, no semiaberto de Mongaguá, também no litoral de São Paulo, e, depois, liberdade. Lá dentro, terminou os estudos, o que ajudou a conseguir um emprego de gari. Conheceu uma garota, Marília, com quem teve um filho. O casal não deu certo e o novo marido de Debora fez um empréstimo no banco para ele construir uma casa e reformar para toda a família. Lugar que nunca ficaria pronto.

Em maio de 2006, Rogério saiu de casa em meio às ameaças de represália pela polícia por conta dos ataques do PCC em São Paulo. Havia feito uma cirurgia na boca e passou rápido na casa da mãe para pegar um remédio. Debora insistiu para ele ficar por medo de acontecer algo. Sem sucesso. Na volta para casa, acabou a gasolina da moto. Ele a arrastou até um posto de gasolina e, lá, foi enquadrado por policiais. Não seria mais visto.

— Eu ouvi no rádio, no dia seguinte, que tinha tido uma matança. Começou a dar os nomes, ouvi para saber se conhecia. O terceiro da lista era o meu filho — relembra, com os olhos marejados.

Começou a gritar, ir atrás de quem fosse para desmentir aquilo. Não deu. Não dava. Foi quando caiu em depressão. Cinco dias no hospital até ser chacoalhada por Rogério e começar a formar as Mães de Maio.

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Por sempre morar em Santos, um dos maiores obstáculos foi sair da cidade. Nem sabia como subir para a capital. Começou a luta para mostrar a verdade dos Crimes de Maio.

 — De lá para cá, militância. Santos ficou pequena. Fui para São Paulo, ficou pequena. Depois, Brasília. Também ficou pequena. Já fui três vezes este ano [2015] para os Estados Unidos.

A luta de anos em São Paulo fez o grupo crescer. Não só de tamanho, mas de influência. Mães em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia…

— É complicado e, ao mesmo tempo, gratificante. O grupo nasceu de um legado do Rogério e quem me dá esse protagonismo é ele. Sou vítima do Estado não só no Dia das Mães, mas no direito de não mais comemorar o meu aniversário, como todas nós. O Estado destruiu minha família. Era eu e meus três filhos. Me sinto Mães de Maio porque não tenho mais como respirar sem esse movimento. Ele me alimenta. Não fui escolhida por nenhuma delas para ser coordenadora, fui escolhida pelo meu filho. Como ele me deu essa missão, não posso passá-la para mais ninguém. Ela vai junto da minha vida até o túmulo.

Já que Tamo junto até aqui…

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