Em 2017 as polícias mataram 940 pessoas, o maior número já registrado; quatro anos depois, foram 570 mortos, menor número desde 2013. Ainda assim, polícia é responsável por 17% dos homicídios dolosos no estado
“Quando meu neto olha para o céu e vê estrela, ele fala ‘olha, vó, é a mãe Mara'”, lamenta a cozinheira escolar Flanilda Oliveira de Andrade, 37. Há um ano, a filha Mara Oliveira de Lima, 19, estava sentada em um banco em frente de casa quando uma das três balas disparadas pelo soldado Marcos de Meira Santos atingiu seu peito e acabou com o sonho de voltar a estudar, terminar o Ensino Médio e começar a trabalhar para cuidar do filho Mattias, hoje com 5 anos, na região do Campo Limpo, na zona sul da capital paulista.
O policial militar disse que disparou porque um rapaz negro teria corrido e feito gesto de empunhar uma arma em sua direção e, para se defender, atirou. A família da jovem, porém, afirma que o suspeito não estava armado. “Meu marido viu que ele estava com um celular na mão e o policial, por ter interpretado que era uma arma, acabou com a vida da minha filha”, diz Flanilda, revoltada.
A filha de Flanilda foi uma das 570 pessoas mortas pela polícia no estado de São Paulo no ano passado. A comparação desses números com todos os parâmetros reconhecidos por especialistas apontam uma violência abusiva, como aponta a história de Mara. Apesar disso, o governo João Doria (PSDB), que assumiu prometendo uma polícia que iria “atirar para matar” e que no início do governo chegou a celebrar mortes cometidas pela PM, modificou sua política após o escândalo provocado pela morte de nove jovens numa ação policial em Paraisópolis, em dezembro de 2019, trocando o comando da PM e adotando medidas contra a violência policial, como a intensificação do uso de câmeras corporais. O resultado é que, no ano passado, as mortes pela polícia, apesar de elevadas, representaram uma queda de 30% em relação ao ano anterior e chegaram ao menor número desde 2013, quando foram contabilizadas 540 vítimas do braço armado do Estado.
A Polícia Civil havia entendido que o soldado Marcos Meira praticou homicídio culposo (sem intenção de matar), mas o Ministério Público Estadual o denunciou por homicídio doloso (com intenção de matar), com erro na execução (artigo 73 do Código Penal), e questionou a versão de legítima defesa. “Neste caso, não há de se falar em culpa, pois a conduta do policial militar foi dolosa, na medida em que ele quis atirar contra o indivíduo que não obedeceu a sua ordem de parada e atingiu a vítima Mara, vez que atuou de forma desastrada”, argumentou a promotora Renata Cristina de Oliveira Mayer. A juíza Marcela Raia de Sant’Anna acatou a denúncia e em 29 de agosto começa a primeira audiência do processo para o Tribunal de Justiça determinar se o PM será ou não julgado por um júri popular. O policial está respondendo em liberdade após uma decisão do Tribunal de Justiça Militar, ainda em fevereiro do ano passado.
“O que me machuca é a impunidade”, diz a mãe de Mara. “Minha filha era uma pessoa de bem, na favela também tem gente de bem, trabalhadora, não é porque é comunidade que o policial tem que chegar atirando, de forma agressiva, agredindo, dando tapa na cara”, lamenta. “Isso não acontece em Alphaville, nos Jardins, no Morumbi, o policial é humilhado e não faz nada”.
A diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, destaca que os índices são consequência de uma decisão político-institucional. “Assim como a gente teve alta na letalidade da polícia em períodos marcados por uma maior conivência política por uso exacerbado da força ou mesmo, muitas vezes, de forma velada ou não, incentivada, as reduções também são momentos em que você percebe que houve uma prioridade política”, explica.
Assim como Samira, pesquisadores ouvidos pela reportagem ressaltam que Doria se elegeu e iniciou o mandato com um discurso de incentivo à violência policial, com declarações de que “bandido não vai para delegacia, nem para a prisão, vai para o cemitério”, além de ter criado uma marca BolsoDoria, ao se vincular com o então candidato à presidência Jair Bolsonaro (PL), nas eleições de 2018, cuja base é marcada por integrantes das forças de segurança pública.
Enquanto governador, Doria seguiu uma linha dura na segurança em 2019. Prometeu os “melhores advogados” para defender policiais que matassem em serviço, nomeou um PM que atuou no massacre do Carandiru para comandar a Secretaria da Administração Penitenciária e vetou a criação de um órgão para o combate à tortura. Ainda naquele ano, impôs um decreto para limitar o direito à manifestação e viu sua polícia aumentar a letalidade policial sem criticar os números.
Também elogiou publicamente policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da corporação paulista, que matou 11 pessoas na cidade de Guararema em setembro de 2019, homenageando os PMs antes de qualquer investigação. Na época, a Ouvidoria das Polícias fez um relatório que indicava que quatro dos 11 mortos não reagiram à ação. Nos primeiros 11 meses de mandato, aumentou de cinco para nove o número de Baeps (Batalhões de Ações Especiais de Polícia), que recebem treinamento da Rota. O mais recente, o 14º Baep, foi criado em 2020.
O ponto de virada, aponta a diretora do Fórum Brasileiro e Segurança Pública, é o Massacre de Paraisópolis, em dezembro de 2019, quando uma ação policial para dispersar um baile funk deixou nove jovens mortos. De uma operação com 31 PMs, 13 deles foram denunciados pelo Ministério Público Estadual em julho do ano passado: um policial militar foi acusado por explosão e 12 por homicídio qualificado com dolo eventual, ou seja, por assumirem o risco de provocar as mortes, cujo processo está no início da tramitação no Tribunal do Justiça, que aceitou a denúncia. “Doria nunca foi um entusiasta do controle das polícias, e Paraisópolis foi de fato um divisor de águas porque ele percebe que está perdendo o controle das polícias, o que é um desafio para todo governador que é quem controla as polícias, e se torna um grande escândalo”.
Ela avalia que a troca de comando da PM fez essa diferença, uma vez que o coronel Marcelo Vieira Salles teve um desgaste após o episódio quando tomou a frente da defesa dos policiais e Doria afastou os 31 envolvidos no início das investigações. Em março de 2020, o governador nomeou o coronel Fernando Alencar Medeiros como comandante geral da corporação.
O descolamento da imagem com Bolsonaro também começava a dar seus sinais e se intensificou na pandemia, aponta a professora de Sociologia e pesquisadora do Grupo de Estudo sobre Violência e Gestão de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (Gevac/UFSCar) Jacqueline Sinhoretto. “Por causa das questões relativas à vacina, ao posicionamento do Estado de São Paulo nas questões sanitárias, houve o rompimento dessa aliança e o BolsoDoria se desconstituiu”, explica. “Por isso, Doria passou a receber uma oposição sistemática por parte dos próprios policiais, muitas manifestações de policiais nas mídias sociais fazendo duras críticas ao governador e aderindo ao lado do Bolsonaro”.
2020 teve o abril mais letal da série histórica, com 116 mortos pela PM paulista. O vendedor ambulante David Nascimento dos Santos, de 23 anos, foi uma das vítimas, em que uma câmera de segurança registrou o momento em que foi sequestrado por uma viatura do 5° Baep, enquanto esperava uma entrega na porta de casa, e apareceu morto depois. O contexto internacional também favoreceu a mudança de postura do governo. Apesar de os movimentos sociais no Brasil sempre terem realizado protestos e reivindicações contra a violência policial, o tema tomou repercussão e visibilidade maiores quando do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio daquele ano.
Além disso, em 12 de julho de 2020, o programa Fantástico, da TV Globo, mostrou filmagem chocante gravada por um celular em que um PM paulista aparece pisando e colocando todo o peso do seu corpo em cima do pescoço de uma mulher negra já rendida no chão. Naquele mês, o comando da PM proibiu o uso do golpe de enforcamento ou mata-leão para imobilizar pessoas em abordagens após diversos casos terem sido registrados nos quais as vítimas não ofereciam resistência. Protestos foram realizados na época, especialmente protagonizados por movimentos negros. Para Debora Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, em entrevista à Ponte na época, a medida não era suficiente sem a discussão do racismo dentro da corporação. “Não adianta proibir essa tática se o Estado não tirar o dedo do gatilho, que é um vírus letal, não faz curva e só atinge a população negra, pobre e periférica”, criticou.
A Ponte mostrou que o governo acelerou o processo de aquisição de câmeras para serem acopladas às fardas dos policiais militares, que tinha começado ainda na gestão Alckmin, em 2017, mas não deu certo, além de que os equipamentos comprados poderiam ser ligados e desligados pelos policiais. Além disso, o Comando da PM criou uma comissão de mitigação interna para a letalidade.
De acordo com a professora da UFSCar, apesar de ser uma medida que mostrou um resultado efetivo, “a PM de São Paulo já pesquisava o uso das câmeras há pelo menos oito anos e já teria tido condições de fazer essa implementação e tomar essa decisão, mas se não fosse esse reposicionamento do governador, talvez as câmeras não fossem desse atual modelo, em que não podem ser ligados e desligados, porque não teria a mesma repercussão”.
Samira Bueno enfatiza que os resultados são positivos porque vidas foram preservadas e que o projeto deve ser ampliado, mas é preciso haver maior transparência e controle externo. “Mesmo que se torne uma lei, isso só funciona se tiver uma fiscalização, se tem alguma instância da polícia que está monitorando, se as imagens estão sendo captadas e salvas. Se o cara que está na rua quer incorrer em uma ilegalidade e quer matar, ele vai encontrar mecanismos”, critica. Ela lembra do caso de Vinícius David de Souza Castro Gomes, um jovem negro de 20 anos, que foi gravado com a mãos na cabeça e sem reagir sendo executado pelo sargento Frederico Manoel Inácio de Souza, do 3º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) de São José dos Campos, interior paulista, como a Ponte revelou em setembro de 2021 e cujas imagens das bodycams dos policiais militares foram exibidas pelo Fantástico dois meses depois.
Além disso, as câmeras são usadas durante a jornada de 12 horas de serviço. Os dados de mortes pela PM durante a folga se mantiveram praticamente os mesmos desde o início da gestão: 2019, com 129 casos; 2020, com 121; e 2021, com 120.
“A nossa dificuldade ultimamente, dos casos que temos acompanhado, é que as famílias sentem medo de denunciar quando são policiais fora de serviço, porque aí não tem farda, não tem câmera, e a truculência e ameaça nos bairros tem sido pior”, afirma a psicóloga Marisa Fefferman, que é pesquisadora do CLACSO (Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais) e articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que reúne movimentos para denunciar violações de direitos humanos e prestar assistência jurídica e psicológica às vítimas.
“É um pouco o risco do que aconteceu em 2013, quando regulamentou o não socorro por policiais, as mortes no serviço caíram, mas as fora de serviço cresceram”, complementa Samira Bueno. Ela se refere à resolução nº 5 de janeiro 2013, que determina que os policiais são proibidos de prestar socorro à vítimas em casos de lesões e mortes decorrentes de intervenção policial e devem chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para realizar o atendimento. A norma veio após uma onda de violência em 2012 no estado, que começou quando, em maio daquele ano, policiais da Rota mataram seis pessoas no estacionamento de um bar na Penha, na zona leste da capital. Na época, uma testemunha disse que um suspeito foi preso no local e executado na Rodovia Ayrton Senna, tendo sido levado para o hospital pelos próprios policiais já sem vida.
Para Jacqueline Sinhoretto, da UFSCar, uma tese comum, citada por autoridades como o ex-secretário de segurança pública Fernado Grella, de que a letalidade policial aumenta proporcionalmente ao número de roubos e confrontos, não necessariamente se sustenta. Segundo ela, o investimento praticamente único em policiamento ostensivo aumenta a exposição desses policiais nas ruas, mas a proporção entre mortes de policiais e de civis mortos em ações da polícia mostra que a conta não fecha. “A hipótese de que policiais matam em confrontos muito violentos, que estão fortemente armados, não se verifica na prática. A gente não deseja a morte de policiais nem de civis, mas quando a gente olha os dados, a gente vê uma diferença de força que mostra que a polícia não está tão ameaçada pelo potencial bélico de civis porque a cada policial morto, foram mortos 64 civis no município de São Paulo em 2014, que foi o ano da nossa pesquisa, e nos outros anos essa proporção sempre é muito maior do que a vitimização da polícia, o que contraria um pouco essa tese”, pondera.
“Infelizmente, a gente não tem dados por batalhão, mas, se tivesse, seria possível fazer uma análise de comportamento, entender as dinâmicas, se no território ocorreram chacinas e que podem ter relação com a morte de algum policial”, pontua a diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Samira Bueno, já que nem a Secretaria de Segurança Pública nem a Corregedoria da PM fornecem esse detalhamento de dados ao público. Ela menciona, por exemplo, a tese de doutorado da pesquisadora do Instituto Igarapé Terine Husek Coelho, publicada em 2017, que apontou, com base em informações de batalhões do Rio de Janeiro, que quando um policial morre em serviço, a chance de um civil ser morto no mesmo dia aumenta em 1150%.
Outro ponto é que os policiais morrem mais na folga do que em serviço. “Isso é bastante relacionado aos bicos [atividades fora do serviço na polícia, como trabalho de segurança particular], por falta de remuneração adequada, e os policiais acabam colocando a vida em risco por falta de valorização profissional”, argumenta o professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani.
“Primeiro que o bico é uma atividade ilegal e são agentes que pregam o cumprimento da lei fazendo esse tipo de serviço; segundo, que a fragilidade desse policial é justamente por ele ter uma arma, ser contratado para isso e acabar morrendo”, complementa Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz.
Samira também indica que outra variável para mensurar sobre o excesso do uso da força é a relação com os homicídios dolosos. Estudos do pesquisador Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de 10%, já os de Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% é considerado abusivo. “Se vemos que o número de homicídios está caindo e de mortes pela polícia não, então algo está errado”, afirma. Em 2019, essa taxa foi a maior da série histórica, com 28,9%. Em 2020, foi de 26,8% e em 2021 caiu para 16,6%.
A política linha-dura não foi inaugurada por Doria, mas sim uma herança da gestão tucana anterior, pondera Samira. “O Doria já assume com o nível de mortes muito elevado, que é algo que foi muito frequente nas gestões do Alckmin, inclusive, e que se mostrou muito mais conivente com o uso da força por parte das polícias”.
Geraldo Alckmin passou de vice para governador em 2001, após a morte de Mário Covas (PSDB) naquele ano. Em 1995, quando Covas assume, as estatísticas da Secretaria da Segurança Pública passaram a ser publicadas no Diário Oficial do Estado e, dois anos depois, em 1997, o governador criou a Ouvidoria das Polícias. E a eleição dele é o início de uma hegemonia do PSDB, que passa a ocupar o Executivo paulista até hoje. “Covas assume três anos depois do massacre do Carandiru, em 1992, e logo depois tem que lidar com o episódio da Favela Naval”, lembra Samira. Favela Naval foi como ficou conhecido o caso em que reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, em 1997, flagrou policiais militares em uma operação numa favela de Diadema (Grande São Paulo) em que apareciam fazendo extorsões, agredindo e humilhando moradores, sendo que um deles foi morto por um policial. “Esse também foi um divisor de águas porque o caso pegou muito mal para a polícia e para a imagem que a sociedade tinha da polícia após a veiculação das imagens”, pontua Samira.
Covas também implantou, em 1996, o Proar (Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco), que obrigava os policiais envolvidos em homicídios a se afastarem do serviço de rua por dois meses, período em que passavam por acompanhamento psicológico e reciclagem profissional. O programa foi interrompido na gestão Alckmin em 2002. Em 2000, foi criada a Comissão Especial para Redução da Letalidade Policial, que funcionou por ao menos 10 anos e deve ser reconstituída por Doria após publicação do Diário Oficial do Estado em dezembro de 2021.
Para Samira, que é autora de uma tese que investiga a reprodução, persistência e legitimidade da letalidade da PM paulista, a Operação Castelinho, que vai completar 20 anos em março, deu o tom para o primeiro pico de mortes em 2003, já que teria sido um “antecedente que estaria influenciando o padrão de uso da força dos policiais que atuam na ponta” na época. O episódio é conhecido pela impunidade de 50 policiais e dois detentos envolvidos diretamente em 12 homicídios de supostos integrantes do PCC em 2002. Em maio do ano passado o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na tese da pesquisadora, a redução da letalidade que aconteceu em 2005 é apontada por meio de uma ata da Comissão de Letalidade que atribuiu como uma das hipóteses o caso da morte do dentista negro Flavio Ferreira Sant’Anna, 28, que “que gerou um impacto na polícia e provocou a reavaliação dos procedimentos de abordagem”. Em fevereiro de 2004, Flavio foi morto por policiais militares, que ainda forjaram uma arma no local do crime, após ser “confundido” com um assaltante. Eles não informaram no boletim de ocorrência que a vítima do roubo não havia reconhecido o dentista. Dois dos cinco policiais militares foram condenados a 17 anos por homicídio qualificado, fraude processual e porte ilegal de arma em 2005.
Mas, em 2006, quando Alckmin renunciou ao cargo para disputar a presidência e seu vice, Cláudio Lembo (PFL, que é o atual DEM), assumiu, aconteceram os Crimes de Maio, quando policiais e grupos de extermínio paramilitares — que testemunhas e outros indícios apontam serem formados também por policiais — mataram 425 pessoas e foram responsáveis pelo desaparecimento de outras quatro, os ataques continuaram após alguns dias, matando mais 80 civis. As mortes foram uma vingança contra os ataques do PCC, que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais.
Logo após a matança, 79 promotores de justiça assinaram um ofício em apoio às ações da polícia. Até hoje, só dois promotores se disseram publicamente arrependidos de terem colocado sua assinatura no documento. O Ministério Público tentou mover uma ação contra o Estado pelos Crimes de Maio, mas demorou 12 anos e a denúncia prescreveu. O caso foi remetido às cortes internacionais e segue sem solução. Na época, também surgiu o Movimento Independente Mães de Maio, para denunciar e cobrar justiça contra violência policial.
Falta de fiscalização
Até o disparo do gatilho, há toda uma cadeia de comando, destaca a pesquisadora da UFSCar. “Em todo o governo Alckmin, e nos intervalos de outros, não houve investimento em prevenção da violência, praticamente esses programas desapareceram das secretarias de Justiça e Segurança Pública, não teve o encorajamento de programas de redução da letalidade e de apoio aos policiais, porque o Proar era de apoio aos policiais, houve um desinvestimento na Ouvidoria e uma concentração de recursos praticamente só no policiamento ostensivo”, elenca Jacqueline Sinhoretto.
“O policiamento ostensivo prima pelas abordagens e pela produção de flagrantes, o que aumenta não a elucidação de investigação, e sim estimula confrontos, e os secretários de Segurança Pública usam o confronto como indicador da atividade policial, como se o aumento de confronto indicasse que a polícia está trabalhando melhor”, prossegue. “Mas poderia ter investimento em outros modelos de policiamento, na polícia investigativa, porque nesse período a Polícia Civil foi sucateada, os próprios policiais dizem isso, e praticamente teve a extinção da polícia comunitária”.
Atrelado ao investimento, está a falta de fiscalização. “A gente não manda mais os casos para a Ouvidoria, a gente vai direto ao Ministério Público”, afirma Marisa Fefferman, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.
Mesmo em terceiro lugar na lista tríplice, o advogado Elizeu Soares Lopes foi o escolhido do governador João Doria para ser ouvidor, e quebrou a tradição existente desde o surgimento da Ouvidoria, há 25 anos, de renovar o mandato do ouvidor. No caso, ele assumiu o lugar do sociólogo Benedito Mariano, que foi o primeiro a ocupar o posto desde a criação do órgão.
Desde o início da gestão, Lopes foi muito criticado por lideranças de movimentos sociais como a própria Rede e o Movimento Independente Mães de Maio por ter uma postura muito mais de mediador do que combativa. Em março do ano passado, o órgão criou um comitê para discutir o racismo nas polícias de São Paulo. A Câmara Técnica, coordenada pelo ouvidor Elizeu Soares Lopes, tem membros da Polícia Civil, da Polícia Militar e acadêmicos. Debora Silva, das Mães de Maio, questionou na época a ausência de movimentos sociais e antirracistas da periferia na composição da Câmara. O grupo teria 90 dias prorrogáveis para apresentar um relatório com propostas, o que ainda não aconteceu. O mandato de Elizeu se encerrou no domingo (6/2), mas ele segue atuando no órgão, já que a Secretaria de Justiça e Cidadania ainda não analisou representações feitas por ele e outros dois deputados que questionaram um erro na publicação da lista tríplice das eleições da Ouvidoria, da qual o advogado acabou de fora.
Além disso, movimentos como a Rede têm reivindicado que o Ministério Público de São Paulo (MPSP), que tem prerrogativa constitucional de fazer o controle externo das polícias, tenha uma promotoria especializada. O MP tem apenas um grupo, o Gecep (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial). Em 2018, o então subprocurador-geral de justiça de Políticas Criminais e Institucionais do Ministério Público de São Paulo, hoje procurador-geral de Justiça, Mário Luiz Sarrubbo se comprometeu a redigir um projeto de criação da promotoria. Desde então, não há novidades sobre o andamento do projeto.
“A gente tem essa interlocução com o Ministério Público, a gente passa os casos de violência e de mortes, mas o que fazemos não é uma política pública e não é desse jeito que deve ser”, pontua Marisa. “Os advogados da Rede vão ao DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil) e têm que pressionar muito para os casos serem investigados porque já se tem a ideia que não vai dar em nada”, critica. “E, por outro lado, a Corregedoria também tem que estar investigando”.
Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança mostrou que, em 2016, 92% dos casos de mortes pelas polícias foram arquivados na cidade de São Paulo. Foram analisados 139 ocorrências daquele ano. “A atuação do Ministério Público tem sido praticamente irrelevante, não tem uma busca ativa nos inquéritos para ir atrás de testemunhas, pedir informações, a maior parte dos casos é arquivado sem investigação e isso é aceito pelo judiciário porque não existe investigação autônoma, é feita pelas próprias polícias e as Corregedorias não têm unidades de investigações centralizadas, então os próprios batalhões que investigam”, critica Jacqueline Sinhoretto.
Em 2019, um levantamento feito pela Ouvidoria das Polícias apontou que 97% dos homicídios cometidos por policiais militares foram investigados nos próprios batalhões onde os PMs trabalham em 2017, ou seja, a Corregedoria da PM investigou apenas 3% dos casos. “Que independência tem um policial que investiga o seu colega?”, questiona Samira Bueno.
A Rede também criou uma campanha que pede o retorno do Proar, o programa de afastamento para policiais que matam, cujo afastamento não seja apenas para exercício de atividades administrativas, como ocorre atualmente, mas no modelo da gestão Covas. “Matar alguém é um ato muito complexo e banalizar essa situação é complicado para a pessoa que mata e para a comunidade, se você mata uma pessoa e nada acontece, não se afasta do lugar que você matou, se banaliza, e existe todo um corporativismo da polícia que cobre isso e que passa a considerar como algo do cotidiano”, explica Marisa.
O que diz o ouvidor
A Ponte procurou o ouvidor em exercício Elizeu Lopes, que respondeu por mensagens via assessoria. Questionado sobre a gestão, considerou que “vem se posicionando reativa e proativamente nas políticas de segurança, investigando irregularidades e propondo ações de aprimoramento, em especial na área dos direitos humanos”. Ele exemplificou a criação do comitê de combate ao racismo cujo relatório informou que ainda não tem data para publicação.
Sobre as críticas de movimentos sociais e antirracistas, disse que “a Ouvidoria nunca deixou de cumprir com suas atribuições legais” e que encaminhou todas as denúncias, sugestões e elogios aos órgãos competentes. “Nenhum movimento social ou denunciante deixou de ser atendido em minha gestão”, declarou. “O Governo do Estado de São Paulo não possui nenhuma ingerência legal na atividade da Ouvidoria, tendo apoiado no limite de suas atribuições garantindo a continuidade do serviço. A Ouvidoria atende todo o estado de SP de forma igualitária por seus diversos canais”.
Sobre as eleições, não quis se manifestar e disse que cabe à Secretaria de Justiça e Cidadania responder sobre o assunto.
O que diz o Ministério Público
Até a publicação, a assessoria não respondeu aos questionamentos.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública, que encaminhou a seguinte nota:
A expressiva redução dos casos de morte decorrente de intervenção policial em todo o estado é fruto do incessante trabalho das polícias paulistas, aliado à política de segurança da SSP, que, entre outras medidas, permitiu a criação da Comissão de Monitoramento da Letalidade, para analisar ocorrências envolvendo ações policiais visando a contínua redução do indicador, que está em queda há mais de 18 meses consecutivos, e tem investido continuadamente em capacitação teórica e prática de seus agentes, bem como em instrumentos de tecnologia e outros que evidenciam a preocupação com o uso proporcional da força.
Há oito anos, a PM de São Paulo deu início aos estudos para o uso de câmeras corporais durante o patrulhamento. A partir de 2016, a corporação passou a promover testes com a tecnologia, além de intercâmbios com forças de segurança de países como Alemanha, Colômbia, EUA e Inglaterra. Desde 2020, as câmeras passaram a ser utilizadas durante os turnos de serviço. Atualmente, são mais de 3.000 câmeras em utilização pelo programa Olho Vivo da PM. Outras sete mil bodycams estão sendo adquiridas por uma licitação internacional. Em relação à comissão de mitigação, ela foi criada em nível de comando com o objetivo de identificar não conformidades e ajustar protocolos de atuação e procedimentos operacionais a fim de evitar mortes em novas ocorrências semelhantes às analisadas. A comissão também analisa e discute ocorrências de alto risco visando ao aperfeiçoamento contínuo da técnica e do treinamento policial.
Cabe ressaltar que todas as ocorrências de morte decorrente de intervenção policial são analisadas pelas corregedorias das instituições policiais, rigorosamente investigadas e comunicadas ao Ministério Público.